
título: "Memórias boas da minha
guerra"
autor: José Ferreira
editor: Chiado
1ªed. Lisboa, 01Out2016
218 págs
21x13,8xm
pvp: 15€
ISBN: 989-51-8234-3
Assunto:
Recordações de um
veterano que cumpriu comissão na
Província Ultramarina da Guiné
Portuguesa.
Apresentação:
– «A guerra é a guerra!
Mas, mesmo na guerra-guerra (em
tempo de guerra!) surgem, por vezes,
imprevistos, situações bizarras e
com humor, em perfeita contradição
com o ambiente que se vive, embora
só mais tarde, ao recordar, nos
provoque uma gargalhada.»
(Alberto Augusto Abrunhosa
Branquinho, ex-alf milº infª da
CArt1689)
– «Fá Mandinga, primeiro domingo na
Guiné.
A nossa Companhia (CArt1689) havia
chegado a Fá Mandinga nos primeiros
dias de Maio de 67. Fizemos treino
de adaptação na zona do Xime, em
Ponte Varela e no Enxalé. Andámos
por lá relativamente à vontade e
chegámos a não alvejar o IN,
apanhado desprevenido em deslocação,
o que serviu de chacota na sede de
Bambadinca, ao qual a nossa CArt1689
estava adstrita (que não era o nosso
BArt1913, que fora colocado em Catió).
O certo é que, de repente, apesar da
inexperiência de combate, fomos
mandados para o Óio (zona de Samba
Culo), que era uma das zonas mais
perigosas da Guiné, sendo a
progressão apeada feita a partir do
destacamento de Banjara.
Transportados em viaturas desde
Bafatá, chegámos a Banjara, onde
fizemos um grande jogo de futebol,
no "estádio do capim", que, apesar
de muito aquém das medidas
regulamentares, não impediu a nossa
vitória expressiva de 7 a 2 contra
os desgraçados residentes, que
viviam ali mais limitados que o
melro enjaulado do meu vizinho.
Digamos que com cinco semanas de
Guiné, ainda tínhamos bastantes
reservas energéticas acumuladas na
santa terrinha da Metrópole.
Já passava da meia-noite quando
saímos virados a norte. Fomos logo
aconselhados a poupar a água, visto
que só teríamos hipóteses de
reabastecimento, lá para o meio-dia,
quando se atingisse um rio.
Ninguém estava habituado a tanto
calor, especialmente no interior da
mata, onde, de noite, o oxigénio
rareava. Daí que a água transportada
nos cantis e pelos carregadores que
nos acompanhavam, foi desaparecendo
com o amanhecer.
Outras duas ou três companhias
também andavam lá pela mesma zona,
integradas na mesma operação (Op
Inquietar), dando-nos uma confiança
ilimitada nos êxitos iminentes. E
como durante a instrução na
Metrópole, se incutia que o que era
difícil era apanhar os "turras"
porque, "cobardemente", fugiam, nós
já tínhamos alguns valentões capazes
de correr atrás deles, logo que os
ataques começassem. Quem os ouvia,
incluindo alguns graduados, ficava
com a ideia de que a guerra não
passava de uma caça ao homem,
apanhá-los à mão (descalços,
desnutridos, mal treinados e
desmilitarizados).
Recordo aqui que no RAP2 (VNGaia),
unidade onde foi formado o nosso
BArt1913, como despedida, foi
efectuado um ataque-demonstração, em
que eu fui designado para comandar o
grupo de assalto. Eu, que sempre
trazia bala real na câmara desde os
'Rangers' de Lamego (onde as
"desviei"), fui advertido e
instruído pelo comandante do
batalhão para que se tirasse o
"pau-bala" das cápsulas e fosse
substituído por algodão. Mais –
foram dadas instruções para agir,
segundo a guerra clássica, de
capacetes, com os postos marcados e
os braços estendidos, a indicar a
"metralhadora à esquerda" ou "à
direita", sempre a correr para
envolver e aniquilar o IN.
Todos os militares eram dignos
discípulos de Marte e tinham também
aprendido, mais ou menos, a teoria
da cautela e caldos de galinha, que
lhes tinham ensinado, mas, com tanta
gente e tanta confiança, pensava-se:
coitados dos "turras", se a gente os
descobre…
Todavia, também havia alguém que
passava o tempo a advertir os
soldados dos perigos que poderiam
surgir e, também, sobre a falta de
água, conforme se veio a verificar
com alguns militares, ainda nas
primeiras horas da madrugada. Tudo
parecia estar a ser descuidado. Era
o barulho, as conversas, os espaços
demasiado curtos entre os homens, a
desatenção, etc. Como reacção às
minhas manifestas preocupações, era
normal os visados encherem o peito
e, até, gozarem:
- Calma, ó meu furriel. Parece que
está com medo.
Cruzámos com malta de outra(s)
companhia(s) e, então, a algazarra
parecia a do reencontro dos ciganos
na Feira de Espinho, às Segundas de
manhã. A dada altura até se
perguntava em voz alta:
- Onde está o alferes tal? Está aqui
fulano do curso de Vendas Novas?
Mais uma horita de progressão e
muitas reclamações, eis que se
parou, para descanso. Uns
instalaram-se logo nesse local e
outros foram-se deslocando, à
procura de uma sombra das poucas
árvores e muitos arbustos. E como se
amontoavam, procurei afastar um
pouco o nosso Pelotão para a direita
e mais para norte. Assistiu-se então
ao barulho típico de um pic-nic. Só
faltou ouvir-se perguntar pelo
presunto e pelo garrafão do "binho
berde". Todos, ou quase todos,
estavam de tronco nu, sendo de
salientar um alferes que até as
calças tirou. As armas encostadas
(quase) à balda e as roupas, a
enxugar do suor, penduradas nos
arbustos, ao sol, transmitiam uma
imagem de verdadeira paz e alegria
que nem na "Aldeia da Roupa Branca".
Digamos até, que com um cimbalino e
um cheirinho a pingar, ficaríamos
por ali umas horitas em alegre
convívio.
Tudo bem… seria uma maravilha se a
guerra fosse assim. Mas (lá vem
sempre o filho da p*** do "mas"),
quando menos se esperava, inicia-se
um tiroteio tão perto de nós e a
envolver-nos, que parecia que nos
estavam já a apanhar à mão, ao mesmo
tempo que se ouviam alguns gritos de
"colonialistas, filhos da p***,
salazaristas, fora daqui, ide para
Lisboa".
Estávamos todos desprevenidos
(alguns dormiam a sesta). Recordo
que foram relativamente poucos os
que responderam de imediato ao fogo,
mas estou seguro que foram esses
que, sem parar, utilizando as armas
e munições que apanhavam, evitaram o
assalto. A confusão era geral, os
gritos permanentes; uns de joelhos
pediam a Deus, à querida mãezinha e
ao Senhor Santo Cristo, para lhes
valer e outros à Senhora da Saúde e
à Nossa Senhora de Fátima. Muitos,
desorientados, nem sabiam onde
tinham a arma, outros não eram
capazes de a apontar e, ainda
outros, descarregavam os cartuchos
com a arma virada para o céu. E os
que estavam perto de uma árvore
maior, furavam por baixo dos
colegas, amontoados, para ficar por
debaixo, provocando a subida dos
outros que, ao ver-se, de novo, por
cima, repetiam a operação. Enquanto
isso, o "valentão da Lixa", agarrado
ao tubo do morteiro 60, desesperado,
sem prato, sem granadas e sem saber
o que fazer, gritava:
- Ai querida mãezinha que vamos
morrer aqui todos - e pedia, também
em voz alta, o apoio da Nossa
Senhora de Fátima, com quem,
seguramente, havia firmado o
contrato do feliz regresso…
Claro que pouco a pouco, todos foram
reagindo e assumindo o controlo da
situação. Não morreu ninguém, nem
sequer houve feridos nesse embate
(aparte algumas pequenas escoriações
e queimadelas com as armas mais
utilizadas). Alguém estava a
apontar, por engano, para os nossos
camuflados pendurados nos arbustos,
porque o dolman do furriel [milº
Fernando] Cepa tinha 11 (onze!)
buracos.
Na mesma operação houve outros
embates mas, aí já não eram os
mesmos periquitos a reagir. Antes
pelo contrário, graças à aflição do
Baptismo de Fogo, iniciou-se ali um
comportamento responsável e eficaz,
que nos acompanhou por toda a
comissão de serviço, tendo a
CArt1689 alcançado a Flâmula de
Honra em Ouro do CTIG e um prestígio
que nos acompanhou até ao fim da
comissão.»¹
¹
(José Ferreira da Silva, in
"Baptismo de Fogo - a grande lição";
publicado no 'post' 7004 do
blogueforanadaevaotres)
– «Para a CArt1689, a ida para as
"termas" de Canquelifá foi, ao
contrário do resto da comissão, um
período de quatro meses de quase
repouso. Constava que "eles" iam
mexer com a zona, mas isso só veio a
acontecer depois de termos
regressado. Já não havia combates
por ali há cerca de um ano, o que
era uma situação anormal e…
agradável.
Entre Canquelifá e Piche havia um
destacamento em Dunane. Era um posto
segurança avançado, que funcionava a
nível de pelotão, reforçado pelos
milícias locais, que viviam lá com
os familiares. Os patrulhamentos
eram pequenos e os serviços eram
poucos e bem distribuídos. Além
disso, comia-se muito melhor, porque
havia fartura de carne. Daí ser
chamado "Hotel Dunane".
Não sei por que razão, eu era
presenteado, assiduamente, com um
pequeno saco com ovos, que alguém
vinha colocar à porta da minha
"tabanca privada". Como eu não os
comia, os sacos com os ovos iam-se
acumulando.
Resolvi falar com o cozinheiro para
saber da possibilidade de fazer um
prato especial, que baptizei de
"Bife à Dunane" – bife com batatas
fritas, ovo a cavalo e picles.
Surgiram, então, algumas
dificuldades. Onde fritar tantas
batatas? E os ovos?
Começava a duvidar que fosse
possível fazer um prato tão
sofisticado, mas o cozinheiro,
contra o que era habitual,
entusiasmou-se. Chamavam-lhe
"madeirense", mas também era
conhecido por "badalhoco", que o
Serafim Martins Delindro, pasteleiro
de profissão, na sua forma especial
e acutilante de dizer, corrigia para
"senhor badalhoco". Era um pouco
barrigudo, meio loiro meio ruivo,
sempre com barba de alguns dias,
usava um bigode parcialmente
queimado pelos cigarros, espetado,
excepto no rego do nariz, onde
estava colado ao lábio; era difícil
saber se seria da cerveja ou do
ranho que lhe corria do nariz.
Vestia uma camisa encardida, solta
por cima dos calções, que se
apresentavam abertos à frente,
devido à força da barriga e à falta
de botões. Calçava umas botas
envelhecidas, quase desfeitas pelos
pontapés que dava na lenha a arder e
nos apetrechos da cozinha.
A frigideira para fritar os ovos foi
improvisada com uma chapa com as
bordas viradas à força para cima.
Quando lhe entreguei os últimos ovos
já estava ele a colocar o óleo na
frigideira, que estava assente em
cima de uns adobes e a lenha ardia
já fortemente por baixo. O
"madeirense", sob aquele sol
escaldante, com a cerveja na mão e o
cigarro na outra, transpirava
copiosamente.
- Já tá bom, ma Furiel Seilva, –
dizia ele. E cuspiu uma "bisga" para
dentro da frigideira, a confirmar
que o óleo já estava bem quente.
Largou a "bazuca", chupou a "barona"
até aos dedos queimados, deitou-a
fora e começou a partir os ovos, um
a um, contra a borda da frigideira.
Despejava-os imediatamente no óleo,
mas, afinal, havia ovos em todas as
fases de gestação. Havia alguns
ainda bons para comer, outros eram
já mais pintainho que ovo e de
outros saíam pintainhos que
patinhavam no óleo a ferver. O
"madeirense" sacudia-os para fora da
frigideira com um graveto que
apanhou do chão, gritando:
- Saie dae, filhe da piiiiuta!
E, como a cena se repetia,
lamentava-se:
- Ai maezenha, que cuaralhe de
sort’a menha!!!
No final ninguém reclamou do
cozinheiro ou do cozinhado. Pelo
contrário, todos adoraram aquele
prato especial confeccionado por um
cozinheiro ainda mais especial, que
foi muito cumprimentado.»²
²
(José Ferreira da Silva, in "Bife à
Dunane"; publicado no 'post' 6696 do
blogueforanadaevaotres)
– «Nunca pensei que, 40 anos depois
da guerra da Guiné, me visse a
participar numa acção de cariz
fundamentalmente militar. Fui a
Sátão, perto de Viseu, para assistir
à homenagem póstuma ao alferes do QP
Henrique Ferreira de Almeida.
Após alguma insistência do Fernando
Cepa (camarada ex-combatente), com
quem tenho mantido um óptimo
relacionamento, senti alguma
curiosidade em saber o desfecho
daquela morte incrível, ocorrida na
noite de 13 para 14 de Julho de
1968, durante um violento ataque das
forças do PAIGC ao aquartelamento de
Cabedu.
O capitão comandante da Companhia,
que havia sido evacuado por
ferimento em Gandembel, em Abril,
durante a implantação de um
aquartelamento no corredor do
Guilege, veio despedir-se e partira
nesse dia 13, para Bissau, tendo
como destino final Lisboa, para
frequentar os Altos Estudos
Militares no Estado Maior.
Por outro lado, o furriel Matos
também chegou nesse mesmo dia, para
substituir o
furriel Belmiro, falecido em
Gandembel, aquando do ferimento do
capitão.
Lembro-me de estarmos reunidos
naquele degrau alargado, junto ao
pequeno bar, depois do jantar, em
ambiente divertido, desta vez
bastante enriquecido pela simpatia
que o periquito Matos trazia. A dada
altura e umas cervejolas depois,
numa tentativa de amedrontar este
recém-chegado, segredávamos uns para
os outros a informação de que se
esperava um ataque durante essa
noite, o que era invenção nossa,
claro. Certo é que ele não
acreditou, sorriu e ficou, ali
mesmo, adormecido e bastante
"pesado", a justificar a sua
descontracção e o evidente cansaço
da viagem, seguramente agravado pelo
excesso de bebida.
Deveria ser cerca da meia-noite
quando sofremos, efectivamente, um
ataque. Foi bastante intenso e muito
próximo, pois parecia-nos que o
inimigo estava junto à vedação do
lado da mata e dos coqueiros.
Justamente ali, existiam uns
fornilhos (bidões cheios de
explosivos) enterrados e ligados por
fio eléctrico aos abrigos do meu
pelotão. Enquanto a companhia reagia
ao ataque, dirigi-me para o abrigo a
fim de ligar as pontas dos fios aos
pernos da bateria. Invadido pela
excitação daqueles momentos, tremia
com os fios agarrados, um em cada
mão, imaginando a resolução imediata
do ataque e os avultados estragos
que iria provocar. Inclusivamente,
até receei que o efeito das
explosões nos atingisse. Cheguei a
hesitar, mas a intensidade do ataque
era tal que não tinha outra
alternativa. E liguei-os. Porém,
nada aconteceu. Insisti, mas em vão.
(No dia seguinte verificámos que os
fios haviam sido cortados junto do
arame farpado).
Corri para o morteiro 81. Lancei as
primeiras granadas, mas, apesar de o
inimigo parecer estar ali, a cerca
de 100 metros, foram parar longe.
Fui encurtando a distância, até
sentir que seria muito perigoso
continuar a alterar a posição de
fogo. Penso que foram disparadas 27
ou 28 granadas. (Tenho uma foto que
mostra alguma cedência do chão sob o
prato do morteiro).
Após sofrermos qualquer ataque, e
ainda sob o efeito da adrenalina,
era normal o contacto imediato entre
nós, especialmente entre os mais
próximos, para sabermos das
possíveis consequências e também
para cada um exteriorizar o filme
desta sua nova e indesejada
experiência militar.
Logo que terminou o tiroteio,
dirigimo-nos para junto do bar. Ali
estava o Matos que tendo estado
exuberantemente exposto naquele
mesmo lugar, nada sofreu. Disse que
acordou bastante atordoado e como
nunca tinha estado debaixo de fogo,
confessou:
- F****da-se! Vocês fazem um barulho
a experimentar as armas!...
E foi nesta altura que soubemos que
o alferes Ferreira de Almeida havia
sido atingido no abrigo das
transmissões – o local mais seguro
do aquartelamento. Era subterrâneo e
localizava-se sensivelmente no meio
do aquartelamento. Tinha uma seteira
que se situava ao nível do chão
exterior. Uma granada deflagrou ali
perto e um dos estilhaços atravessou
essa seteira e penetrou no pescoço
do alferes, que se encontrava de pé.
A homenagem, em Sátão, foi promovida
pelos seus camaradas da Academia
Militar, conforme se pode verificar
na placa colocada na casa onde
nasceu. Naquela rua, agora baptizada
com o nome do homenageado, estava um
grupo (pelotão?), composto por
militares de ambos os sexos que, em
formatura, prestou as devidas honras
militares.
Creio que estiveram lá três generais
e dois coronéis, além de vários
outros oficiais do QP. Um coronel,
que mostrou conhecer bem o
homenageado, era o anfitrião e fez a
sua intervenção, enaltecendo as
qualidades do
Henrique Ferreira de Almeida.
Além do presidente da Câmara
Municipal de Sátão, também discursou
o Chefe de Estado Maior do Exército,
ficando sem intervir o nosso
comandante da CArt1689. As
cerimónias terminaram com uma
romagem ao cemitério, presididas
pelo pároco local, junto do jazigo
de mármore, onde é possível ler uma
lápide, cuja identificação termina
com as palavras "morto ao serviço da
Pátria". Um fim previsto (?) por um
homem que, orgulhosamente, se
identificava como oriundo dos Montes
Hermínios e Terras de Viriato, e que
várias vezes deixava transparecer o
seu princípio militar: Morte ou
Glória.»³
³
(José Ferreira da Silva, in "Outras
memórias da minha guerra"; publicado
no 'post' 6926 do
blogueforanadaevaotres)
Militares da CArt1689, falecidos em
campanha:
- FRANCISCO MARIA PEREIRA ADÃO