Trabalhos,
textos sobre operações militares ou livros
Pedro
Cabrita
Leonel
Pedro Cabrita, Tenente Mil.º de
Infantaria, nascido no dia 7 de
Março de 1948, na freguesia da Guia,
concelho de Albufeira, distrito de
Faro;
Em 23 de Setembro de 1970,
aspirante-a-oficial miliciano
atirador de infantaria, em serviço
na Região Militar de Angola como
tirocinante na Companhia de
Cavalaria 2692
(CCav2692)
do Batalhão de Cavalaria 2909
(BCav2909) «SUS...A ELES», graduado
em alferes miliciano;
Em
23 de Outubro de 1971, entretanto
graduado em tenente milº QEO de
infantaria, tendo sido mobilizado
pelo Regimento de Infantaria 16
(RI16 - Évora) para servir Portugal
na Província Ultramarina de Angola,
embarca em Lisboa no NTT 'Vera
Cruz', a fim de comandar a Companhia
de Caçadores 3441 (CCac3441) do
Batalhão de Caçadores 3857
(BCac3857) «CONDUTA BRAVA EM TUDO
DISTINTA»;
Em 13 de Janeiro de 1974 regressa à
Metrópole, considerado tenente
miliciano na situação de
disponibilidade.
O livro:
"O Último Inferno"
Guerra
Colonial 1971 - 1973
título:
"O Último Inferno - Guerra Colonial
1971 - 1973"
Deixemos em sossego as três últimas
naus que, moribundas, pairam sem
vento frente ao Restelo –
derradeiros baluartes da nossa
soberania e reinado sobre os mares
negros do medonho e desconhecido – e
sigamos o rio Tejo meia légua a
montante, vogando no intrépido curso
do tempo que escorre fluido e
imparável a jusante.
Continuemos, contudo, no trilho de
navegadores que teimam em partir do
Tejo na demanda das rotas do oiro e
da glória que quebrem as amarras da
miséria de lusos confinados à
minguada faixa de terra erguida por
Viriato e Afonso Henriques,
sustentada depois em pertinazes e
audaciosas batalhas contra Roma e
Sarracenos.
Pedaço de pátria que se viria a
revelar curto na dimensão do desejo
de crescer e expandir o abraço
fraterno que sempre quisemos dar a
todos os povos do mundo, e estreito
numa eterna raiva da opressão
castelhana que nos encostou ao mar,
na esperança de que viéssemos a
sucumbir numa rendição pela força
das armas que, secular e
pacientemente, em vão empreenderam.
Uma fronteira de mar temeroso e
sombrio, transformado em portão de
uma nova liberdade que escancarámos
ao mundo, por onde brandimos o punho
cerrado erigido a Castela,
proclamando a soberania do desejo de
querer ser português e não outra
coisa qualquer, embora condenados a
ter que enfrentar muitos gigantes
Adamastor – todos aniquilados, em
terra e no mar – numa luta desigual
e sem temor das vozes que, piores
que ventos de proa, nos empurravam
de volta às praias, donde partíamos
de pé descalço e vela remendada a
abarrotar de sonhos e desejos de
conquistas. Uma nesga de terra com
gente dentro.
De gente desamarrando o destino e
soltando as velas do anseio de
querer palmilhar as ondas do abismo
em busca de si mesma e de outros
mundos que lhe dessem as asas duma
liberdade sempre sonhada, mesmo
correndo o risco de se afundarem em
cada peleja de vaga arremessados
para as profundezas dos oceanos,
donde se erguiam trôpegos e sem
norte, mas marinheiros ressuscitados
para nova viagem de horizonte e
infinito desconhecidos, onde se
perdia o olhar mareado e turvo dos
balanços do cesto da gávea.
Gente que amalgamava na marinhagem a
fidalguia, homiziados e outros
tantos menos afortunados, unidos num
mesmo desejo de redenção da sorte,
crentes na contemplação e mão
protectora dos céus, conformada nos
mandatários do divino de assento
permanente à mesa do rei.
Gente e soldados crentes que era a
pátria que lhes rogava o sacrifício
de por ela pelejarem e por ela
sucumbirem, numa espécie de imolação
em nome dos senhores da pátria e de
um eterno quinhão de Deus que,
dando-lhes a aspereza da vida, dela
vem ainda demandar contas e
recompensa.
Cinco séculos de uma História de
glória contada nos solavancos de mar
alteroso da própria História.
Quinhentos anos de pelejas de mar,
pirateio de almas e usurpação do
fruto da terra agreste e selvagem.
Cinco séculos de submissão e
mordaça.
Uma eternidade por fim agonizada num
último naufrágio de uma nau-pátria
envelhecida – desnudando os madeiros
carcomidos pelo tempo e pelo sulcar
incansável de uma perpetuidade de
ondas – incapaz de resistir a uma
última vaga da História que nos
atirou por fim de volta às praias do
Restelo, de mastro quebrado e vela
desfeita, eternamente pobres, e uma
renovada brecha aberta num orgulho
novo que nos voltará a atirar de
volta ao destino de romper
fronteiras e marear a vida num outro
lado do mundo.
Um tempo novo amarfanhado de novas
causas decalcadas de uma mesma
História de gestos e desejos
soletrados vezes sem conta.
E sempre um mesmo anseio de romper o
espartilho de um mar, que, embora
vencido, acabou por nos naufragar o
futuro, e de uma fronteira
castelhana sustentáculo de um
orgulho secular de lusitanos
empertigados contra toda uma horda
de invasores que sempre fomos
capazes de escorraçar e proclamarmos
o desejo de sermos nós próprios e
nunca escravos da vontade alheia.
Um novo mar desafiador e pérfido
mas, por vício do hábito, uma mesma
História a percorrer, um sofrimento
igual a que nos fomos acostumando,
deixando o destino e a fé nas mãos
de Deus e dos céus, donde
continuaremos a esperar, plácida e
inexoravelmente, que tudo nos chegue
por obra e graça do divino.
Derradeira viagem, ainda de
pano erguido…… e peito alcandorado
às ondas agrestes da História…
Acostado ao cais de Alcântara
ergue-se imponente o Vera Cruz de
proa ainda apontada à barra.
Símbolo do que resta da gloriosa
armada do passado, derradeiro
testemunho das ilustres linhas de
África, Índia e Brasil.
Linhas que descendem das rotas da
fama traçadas a prata, ouro e
pimenta por Gama, Cabral e dezenas
de outros de menor vulto, mas a
mesma raça, nos mapas deixados ao
mundo como herança da grandeza e
génio de um povo de pouca riqueza
mas força de alma capaz de recomeçar
tudo de novo as vezes que a História
quiser.
Saudados pelas mesmas lágrimas que
cerca de quinhentos anos atrás já
corriam no Restelo – vincadas pela
censura dos eternos velhos de razão
temperada pela tarimba da miséria
marcada nas rugas que lhes sulcam a
face – mais de dois mil marujos (que
o serão por dez dias) de pouco
traquejo no manejo das velas da
sorte, vão-se amontoando nos porões
mais profundos da nau, dispostos em
camadas de vómito que hão-de verter
na mareagem alterosa do equador, já
de olhos postos na torna-viagem
[1]
que os trará de novo à vida e ao
frio caloroso das brenhas da serra
alva, donde desceram amarrados de
pensamento e vontade.
Por fim, desembarcados, meio tontos
e perdidos, no cais de Luanda,
depois de zurzidos pelo temperamento
agreste do mar, hão-de mergulhá-los
sem perda de tempo na tempestade de
cafres [2]
que quinhentos anos depois – ainda
de pé descalço – teimam em querer de
volta a terra queimada pelo sol que
lhes marca a pele do negro do
carvão. Uma terra vermelha assim
tingida pelo desejo de conquista e
ambição de súbditos e sucessores de
Sua Majestade el-rei D. João II, num
letargo de quinhentos anos,
enobrecendo pouco ou nada a memória
dos que quiseram construir um
império de magnificência e não foram
além de um repetido exercício de
opressão.
Os tempos percorreram lentos todos
os séculos que por ali passaram.
O sol fustigou, não apenas a pele,
mas também a consciência de
liberdade dos que naquela parcela de
África se viram nascer, esperando um
dia fazer daquela a sua terra. Os
desejos foram sendo calcados sob o
peso dos próprios tempos. O silêncio
das grilhetas amarfanhado pelo som
surdo do pilão que, na cadência da
dor, ia esmagando um a um os bagos
da solidão, que a longa noite
entorpecia numa bebedeira única de
ressaca sempre adiada. Um vasto
império de sol, gente e riqueza
desmedida.
Um magro pecúlio de repartição, de
humanidade e até respeito pela
própria consciência daqueles que,
enfeitiçados pelos eternos apelos do
mar, usurparam e fizera condenar ao
silêncio cinco séculos de História
plenos de gente e raças, que jamais
fomos capazes de irmanar.
A nossa verdadeira História de
África não acaba aqui. Começa agora.
…/…
Falava-se de minas que despedaçavam
viaturas inteiras e reduziam a
ferros retorcidos aquilo que
segundos antes eram verdadeiras
fortaleza em movimento,
transportando a valentia dos que se
achavam donos e senhores da vida,
alheios à adversidade e crueza da
guerra, como se de uma longínqua
probabilidade se tratasse. Nem os
intimidava – por ausência da
convivência próxima com o horror – o
cemitério de ferros retortos e meio
calcinados, ainda amontoados a um
canto do quartel, à espera de serem
transladados para a longa vala comum
da retaguarda da guerra. Medida
atenta dos generais das praias do
Mussulo, procurando não deixar
corroer o ânimo e o destemor dos que
viram os companheiros desaparecerem
num ápice das suas noites de
bebedeiras, cozinhadas numa estranha
mistura de temperos de euforia, medo
e desejos de fugirem e apearem
daquela loucura de conviverem meses
a fio com a morte que os farejava
como animal esfaimado, acometendo
sem aviso nem comiseração.
Ficara a notícia de emboscadas no
mato e nas picadas, verdadeiras
tempestades de fogo de um só trovão,
que ribombava por tempo
interminável, sem origem definida
mas alvo certeiro, que varavam
vários com uma só bala perfurante.
Actores, que naquele palco não
passavam de simples figurantes,
tombando a compasso com a morte
fútil de peões de tabuleiro,
sacrificados por um rei ufano e
distante, que os contabilizava como
números de riscar e abater ao
activo, logo que inúteis. Números.
Números apenas.
Número de baixas das NT [3],
eufemismo de mortos e estropiados
esquecidos no dia seguinte pelos
mandantes da guerra, mas vivos para
sempre na memória dos que os viram
tombar. Número de IN [4]
abatidos ao activo e contabilizados
como troféus de vitória; uma mera
ilusão que se invertia com a
conquista de mais três por cada um
que caía.
Número de armas apreendidas ao
inimigo; algumas menos mortíferas
que catanas de gume rombo, mas
parcelas activas de estatísticas
políticas que ajudavam a convencer
os que pagavam o tributo da guerra e
outros que a queriam sem fim à
vista. Número de mortos em acidente;
um alívio de consciências que se
opunha aos que pereciam varados
pelas balas do inimigo, ou desfeitos
pelo sopro estrondoso das minas,
como se a dor da morte compreendesse
a virtude da sua causa.
Número de comissões e proventos
amealhados; número de galões e
estrelas, que ornamentam os ombros e
enfeitam a vaidade; número de
fitinhas, que decoram o peito e
enfatuam a pose, conquistadas no
mesmo evento em que dezenas de
anónimos morreram de arma na mão,
sem honra, sem proveito, ou sequer
lembrança.
Números, apenas números. Números
que, no fundo, não iam além da
matemática fria da mentira.
Artifícios e meros jogos de embuste
que deturpavam a frialdade dos
valores com que nos queriam
obscurecer o raciocínio, adiando uma
verdade temida por uns e escondida
por todos aqueles que fazem da
guerra um modo de vida.
…/…
Já ardiam as primeiras cubatas,
quando um estrondo enorme,
acompanhado de uma nuvem de poeira,
se fez sentir em pleno acampamento,
atirando todos para o chão, num
movimento instintivo que o ambiente
de guerra já ensinara como a atitude
mais sensata, na incessante luta
pela conservação da vida.
Seguem-se momentos de ansiedade.
Ninguém entende o que se passa. Não
há tiros. Apenas um silêncio de
sepulcro e um cheiro a explosivo
detonado, que envolve ainda aquela
tremenda explosão e lhes deixa uma
sensação de hecatombe destruidora,
irrompendo abrupta no semi-silêncio
que pairava no acampamento.
O Capitão reforça a estratégia desde
sempre inculcada nas tropas,
gritando:
– Ninguém dispara!
Confuso, tenta compreender o que se
passara.
A primeira avaliação que lhe vem ao
espírito aponta-lhe para uma granada
de morteiro disparada pelo inimigo a
uma boa distância. Achou, no
imediato, que era pontaria a mais,
sendo que este tipo de arma requer
um manejo bastante apurado e
experimentado, habitualmente não
reconhecido naquele inimigo. Além
disso, não tinha sentido o impacte e
a destruição provocada pelos
estilhaços, que, em bocados de gume
afiado, dilaceravam tudo num raio de
dezenas de metros. Também não se
ouvira a detonação da granada a sair
do tudo do morteiro, embora isso
fosse possível, se disparado de
muito longe. A azáfama em que todos
andavam, poderia também ter
deturpado esse estampido, facilmente
abafado por sons produzidos próximo.
Ainda deitado ouve um primeiro
gemido meio abafado seguido de um
grito de alguém.
– Mina! Mina! O Simões pisou uma
mina! Num impulso o Capitão
levanta-se e corre em direcção ao
local da explosão.
– Enfermeiro! Rápido!
No chão, o soldado Simões está
apoiado no cotovelo e agarra a coxa
onde lhe falta toda a perna
esquerda. Sangra abundantemente pelo
que resta do joelho, em curtos
esguichos que acompanham a compasso
as batidas frenéticas de um coração
assustado, e ainda incrédulo, quanto
ao preço e à sorte que lhe coube em
defesa da pátria.
– Um garrote, um garrote – grita o
Capitão, admitindo que aqueles
primeiros impactos de atrocidades de
guerra, haveriam de perturbar todos,
incluindo o enfermeiro, tão civil
quanto inexperiente naquela sua
especialidade militar, como aliás
todos os que ali se encontravam,
ainda que formados de uma cepa rija
de marinheiros, que faziam da
coragem um longínquo horizonte de
vida, embora parcos no uso dos
instrumentos de guerra, pelos quais
haviam trocado meses antes o cabo do
arado, ou o remo, com que venciam as
asperezas da vida e os dias de menor
fortuna.
Os efeitos de uma mina anti-pessoal
eram ainda ali uma novidade para
todos, excepto para o capitão que, à
chegada ao local de estágio, cerca
de um ano antes, se cruzara à porta
do quartel com um soldado em
evacuação, precisamente sem uma
perna. Uma coincidência, logo
aproveitada como um bom teste de
capacidades à entrada, para um
percurso que duraria mais três anos,
e a melhor forma de iniciar aquela
preparação condensada e apertada das
durezas da guerra, como acentuaria
então o comandante. Enquanto se
encosta, pálido, ao peito do
companheiro que o ampara, o soldado
Simões percorre, um a um, todos os
que o rodeiam, com um olhar de
aflição e súplica, como se quisesse
mendigar em algum deles o remédio e
as forças que sentia esvaírem-se já
por aquele fantasma de perna, ou
mesmo tão só a esperança reflectida
nos seus olhares, de que era
possível vencer aquela primeira
arremetida dos gadanhos da morte.
Depressa o Capitão compreende a
armadilha em que haviam caído.
A sua aproximação havia de facto
sido detectada. Astuto, o inimigo
reunira todos os que faziam parte
daquele agrupamento e fizera-os sair
para outro lugar, armadilhando o
acampamento. O chão é arenoso e
propício ao disfarce de minas, por
se encontrar muito pisado e
remexido.
– Atenção! É provável que haja mais
minas. Na medida do possível, pisar
o chão já pisado. Evitar pisos
suspeitos. Montar segurança,
mantendo vigilância na periferia do
acampamento. Alguns ainda se mostram
confusos e assustados,
complementando-se agora o desnorte
com uma ordem de pisar um chão já
pisado, quando todo o acampamento
está repleto de pegadas. Atordoados,
o discernimento esbate-se, e o medo
toma conta de quantos se sentem ali
encarcerados num chão traiçoeiro,
que lhes pode desfazer o corpo e os
deixa morrer lentamente esvaídos em
sangue. Uma arma brutal que se
aparta do instinto animalesco; bem
pelo contrário, um expediente
perpetrado por racionais, visando
uma morte lenta, acompanhada de
sofrimento físico e desgaste
psicológico de quantos assistem,
impotentes, ao deambular da morte.
O Alferes Botelho dá-se conta da
confusão instalada pela paralisia
que transparece em todos. De olhar
assustado, os soldados olham em
redor de si, em busca de caminhos
seguros que os tirem dali. De um
chão limpo que os não despedace num
breve e devastador momento que lhes
marcará o ser para todo o sempre.
O Alferes procura sacudi-los daquele
torpor que lhes tolda o raciocínio.
– Não se esqueçam que, aqui, os
únicos que estão calçados somos nós…
…/…
A ausência de uma única razão capaz
de justificar aquele martírio,
esculpia-se num profundo e longo
silêncio entrecortado pelo piado de
aves nocturnas, que pareciam carpir
aquela espécie de cortejo fúnebre
alongado e inerte no trilho, roendo
a noite já fria e inclemente que os
fustigava da mesma sorte que aos
animais em rondas de fome ao cheiro
a carne morta que já se sentia no
ar. – Meu Capitão. Falta o Braga.
Ninguém sabe dele.
– …!?
Que merda…! Só faltava essa. Alguém
o viu vivo depois do ataque?
– O Balelas diz que lhe parece tê-lo
visto depois do Capitão amandar os
dilagramas.
– O Balelas, o Balelas… O Balelas
depois daquele fogachal todo até foi
capaz de ter visto a Virgem Maria…
Avisem os nossos Alferes que vou
voltar atrás para procurá-lo.
Com mais três militares, o Capitão
regressou ao trilho que já tinham
palmilhado, trinando um assobio que
se havia instituído para comunicação
em situações nocturnas. Contudo, a
única resposta que obtinha era o
silêncio de algumas aves em
preparativos para a sua faina
nocturna – preenchendo a noite com
múltiplos sons e harmonias – e assim
interrompiam o seu gorjear, confusas
pela originalidade daquele som novo
que acometia a floresta.
Num instante um outro desespero
confluía no quadro de angústia que
se vinha desenhando desde aquela
manhã.
Um morto, dois feridos, um deles em
estado muito grave, uma evacuação
abortada, uma noite de chuva
intensa, um cacimbo cerrado, um
percurso já perigoso para percorrer
de dia, a ser feito de noite com
três corpos em padiolas, com
condições atmosféricas péssimas, e
agora um soldado desaparecido, que
não se sabe se está morto, se
perdido, se apenas ferido e que não
pode ser abandonado, sem que se
encontre pelo menos o corpo.
O trinado percorre já toda a
clareira e Pedrosa exagera na sua
intensidade. Já não é bem um trinado
que se ouve, mas um quase grito de
aflição ressoando pela floresta
envolta numa névoa espessa, tornando
fantasmagórico o quadro fumegante
que os envolve. – Parece que ouvi
qualquer coisa, meu Capitão.
O silêncio faz-se absoluto. Não se
respira por longos momentos. Um
tímido e distante trinado de
resposta chega envolto em suspeita
de uma miragem, que carece de
confirmação mais concreta. Pedrosa
repete o sinal, com a resposta a
chegar bem mais confiante e em claro
tom de euforia de naufrago à beira
de ser resgatado das ondas do mar e
de uma morte certa.
Por fim o contacto.
– O que é que te aconteceu, pá –
pergunta o Capitão sem definir bem
se o tom era de censura,
exasperação, se de alívio.
Tímido, e também sem conseguir
discernir o pé em que se encontrava
a disposição do Capitão, balbucia.
– Perdi-me…!
– Perdeste-te…!? Porra! Isso sabemos
nós. Mas como é que te perdeste?
– Com o cacimbo desorientei-me e
meti na cabeça que o trilho de
regresso era para aquele lado. Dizia
o Braga apontando para um
determinado ponto perdido na
neblina.
– Olhe, enfiei-me no trilho do
acampamento e ainda andei um bom
bocado até que me apercebi que
estava sozinho…
– E enfias-te assim num trilho sem
esperar por ninguém? Vais andando,
andando e não achas estranho que
ninguém vá atrás de ti…?
– Eu só ouvi o Capitão dizer:
“Rápido, sair rápido…”. E eu saí… –
Saíste e arrancas sozinho por aí
fora, sem protecção, sem ligação com
nada nem ninguém…?
– É que, quando não senti ninguém
atrás nem à frente, pensei que era o
último e desatei a andar mais
depressa ainda, até que me apercebi
que estava sozinho…
– Enfim, sempre em frente e fé na
Nossa Senhora, não é Braga? –
dispara o Capitão, agora já em tom
bem mais claro, quanto à má
disposição que o inundava.
– Pois! Até acho que foi Ela que me
ajudou, meu Capitão… – …!?
– … Ela fez-me lembrar do Capitão
ter dito que em caso de nos
perdermos, devíamos voltar ao local
donde tínhamos partido, ou então,
parar. Vai daí, voltei para trás e
fiquei aqui na clareira à espera. Já
estava a ver que me deixavam aqui
sozinho.
– Ai Braga, Braga. Grande memória a
da Nossa Senhora… Agora vê se não te
esqueces de Lhe acender uma vela.
– Aliás, tinha acabado de Lhe
prometer que quando voltar vou a
Fátima a pé.
– Esperemos que nesse dia não haja
nevoeiro, Braga… – diz Pedrosa
apressando-se já pelo trilho fora em
passada rápida, quase um passo de
corrida.
– Mas porquê, meu Capitão…? –
pergunta ainda o Braga, enquanto
tentava acompanhar o passo do
Capitão e com óbvia pouca vontade de
voltar a ficar para trás.
– Não sei Braga, não sei. Mas olha
que se houver nevoeiro nesse dia, ou
muito me engano ou ainda vão dar
contigo, uma semana depois, na terra
do Enguias, na praia de Monte Gordo,
em busca de Fátima e da Nossa
Senhora…
…/…
Um estrondo pavoroso irrompe
demolidor e extraordinário da frente
da coluna. Uma violência absurda e
inqualificável. Um som fabuloso que
estremece tudo e parece irromper do
centro da terra. Que trespassa os
tímpanos deixando um rasto de zunido
paralisante que ensurdece
momentaneamente, como se nos
apartasse do mundo exterior.
O olhar de Pedrosa, repentinamente
atraído por aquele colosso que
retira qualquer veleidade à
imaginação, apenas consegue
vislumbrar pedaços de coisas
indistintas que já caem dos céus por
entre a enorme nuvem de fumo e pó
que se ergue a menos de cem metros
do local em que se encontra.
A estupefacção não chega a obter
espaço ou permissão para se
instalar. Todos já caem em molhe,
incrédulos e confusos, arrastados
pela travagem a fundo das viaturas.
Um silêncio de vozes que dura apenas
um breve e impreciso instante em que
se busca ainda o entendimento das
coisas. Um torpor céptico que
imobiliza o pensamento
confundindo-se no espaço obscuro do
pesadelo. Uma desconformidade do
real que não dá tempo à recomposição
das diminutas peças de um puzzle que
em instantes se desconcerta,
alterando por completo o sentido da
linearidade.
– MINAAAA…! – grita Pedrosa numa voz
de sufoco rouco, misto de angústia e
raiva, enquanto procura
desembaraçar-se dos três militares
que lhe caíram em cima.
Sabia que as acções com minas vinham
com frequência acompanhadas de
emboscadas. Percebeu no imediato que
estava na presença de um inimigo
poderoso, disposto a aniquilar de
forma devastadora.
– Abrigar… abrigar…!
Não deu tempo a que saltassem para o
chão mais que dois ou três soldados.
Como que um trovão que irrompe dos
céus, abate-se sobre toda a coluna
um tiroteio indescritível, mais
parecendo tratar-se de um único tiro
que começa e não mais termina.
O som é ensurdecedor. Cai abrupta
uma total falência de vida. Um fim
de mundo; de tudo.
Os tiros nos taipais metálicos das
viaturas riscam o ar caldeando os
primeiros gritos de dor dos que
tombam varados por vários projécteis
em simultâneo. Semeia-se nos vivos a
incerteza do tempo que os separa da
morte, ou se a morte não é já aquela
sensação de existência oca, em que
se deixa de sentir o corpo, e o que
nele ainda sobrevive não depende já
da razão, nem do próprio medo de não
existir.
– Abrigar… abrigar…! – ouve-se,
provindo de várias gargantas, que,
roucas, procuram sobrelevar-se ao
estrondo que domina todo aquele
cenário demolidor.
O militar da auto-metralhadora,
instalada na viatura, é quem
primeiro responde, disparando
ininterruptamente, ainda que
vagueando a direcção dos tiros em
múltiplos sentidos, por não ser
claro o posicionamento do inimigo. O
estrondo em uníssono prolongado,
ecoa pelas cercanias, confundindo
ainda mais a localização dos
guerrilheiros.
Pouco dura a sua abnegação. Em
poucos segundos é abatido pelas
costas, de pouco lhe valendo a chapa
de aço do escudo protector que tem
pela frente.
Os pedidos de auxílio, daqueles que
ainda em cima das viaturas ou no
chão foram atingidos, entrecorta
agora o som cerrado dos disparos de
ambos os lados. São gritos de dor e
desespero a que ninguém pode dar
resposta. O fogo é ainda muito
intenso, tornando impossível
qualquer movimento para fora dos
abrigos, onde cada um procurou
proteger-se.
Pedrosa sente-se impotente para
ordenar seja o que for. A
alternativa é responder ao fogo, até
que este abrande e permita coordenar
uma qualquer acção de resposta que
ponha fim à emboscada.
O local para a emboscada fora
criteriosamente escolhido. O inimigo
estava por certo bem entrincheirado,
pois continuava a disparar sem
descanso de uma posição alta, sinal
de que teria poucas baixas e se
sentia em vantagem.
Por fim é possível fazer passar
algumas ordens, mercê de um ligeiro
abrandamento do fogo. Um interregno
breve, conseguido pela necessidade
de mudança de carregador da arma,
entretanto esgotado.
– Lançar dilagramas! Lançar
dilagramas! – grita por fim Pedrosa,
usando de toda a veemência, por
achar que seria a única solução para
refrear um pouco o ímpeto do
inimigo, embora calculasse que o
posicionamento dos militares que
transportavam os dilagramas, pudesse
não ser o mais favorável. Ou até
mesmo que alguns tivessem morrido.
– Dilagramas! Dilagramas! – reforça
ainda com algum desespero, no
sentido de incentivar mudanças de
posição dos atiradores, se fosse
caso disso.
Soa o primeiro rebentamento de
dilagrama, seguido de um segundo. Os
efeitos são imediatos. O fogo
inimigo refreia de forma clara,
dando lugar, com maior clareza, ao
clamor dos gritos de dor e desespero
dos muitos feridos que pedem
auxílio.
Por momentos instala-se alguma
confusão, com os enfermeiros sem
saberem para que lado se voltar. Da
frente da coluna vem a primeira
notícia de horror, imprecisa mas
devastadora.
– Morreu tudo lá na frente…! Não se
aproveita nada.
Pedrosa pede o rádio e emite ele
próprio um pedido desesperado de
auxílio para a companhia. Sabe que
no aquartelamento apenas ficou uma
viatura, que habitualmente estava
avariada, ou fornecia peças às
restantes. Ordena que se façam ao
caminho e tragam todo o soro
disponível. Segue também a
informação, para a sede do batalhão,
com o pedido de um número de
evacuações indeterminadas a partir
do aquartelamento para a madrugada
do dia seguinte, uma vez que o local
onde foram emboscados não oferece
condições para a aterragem dos
helicópteros. Mesmo que os houvesse.
Os tiros são agora esporádicos e
distantes, sinal de que o inimigo
deu por terminada a emboscada.
Passaram cerca de vinte minutos
desde o rebentamento da mina.
Pedrosa ordena que se penetre na
mata e ocupe pontos estratégicos no
terreno, de forma a garantir a
segurança da coluna.
Já é possível alguma movimentação
segura ao longo da picada. Reina o
desespero e a confusão. Mistura-se a
agonia dos que se esvaem em sangue,
com a impotência dos que os amparam,
muitos incapazes de suster as
lágrimas que rolam rosto abaixo,
rematando uma angústia que não cabe
mais dentro do peito.
Os meios de enfermagem de urgência,
já escassos, esgotam-se nos
primeiros feridos. São arvorados
enfermeiros de ocasião. Há
movimentações desesperadas e sem
nexo. Alguns militares movem-se em
silêncio, sem arma, com as mãos
entrelaçadas sobre a cabeça, como se
procurassem uma explicação, ou ainda
uma solução de retorno ao minuto
anterior à tragédia.
Os rostos não têm expressão. A
palidez descoloriu-lhes a tez
queimada por um sol insolente,
sempre a fustigá-los com uma
torrência de calor devastadora, que
complementa o sufoco e os oprime.
O inimigo calou-se. A segurança está
montada.
Pedrosa percorre a picada
dirigindo-se à frente da coluna onde
ocorreu o rebentamento da mina. O
palco onde se encena uma tragédia de
pavor, de onde todos fogem, porque a
coragem, de uns quantos que sejam,
tem limites. Um proscénio de
animalidade humana, que nos
emporcalha a racionalidade de que
nos queremos hipocritamente
orgulhar.
De uma das Berliet, que se encontra
ainda meio atravessada e
desgovernada na picada, corre um
fino fio de sangue de dois militares
que jazem na caixa da viatura
trespassados por várias balas.
Por fim o horror.
O que resta da viatura que seguia à
frente, não passa de um amontoado de
ferros retorcidos ainda fumegantes,
onde não é possível descortinar
peças inteiras que identifiquem a
sua função anterior. Apenas a
traseira da viatura mantém o taipal,
que entretanto está mergulhado na
enorme cratera que se abriu no chão,
enredado no molhe de ferros e alguns
corpos, que parecem ter sido ali
colocados numa encenação dantesca de
horror descido aos infernos.
Em redor vêem-se cadáveres
desmembrados e outros inteiros mas
disformes. Feições irreconhecíveis.
Botas que mantêm dentro, apenas uma
parte da perna. Bocados de tronco,
ainda envergando o camuflado,
entretanto ensopado numa cor nova
que lhe apaga o disfarce. Afinal, um
artifício pouco engenhoso que de
nada serviu, nem iludiu um inimigo
astucioso e ávido de pátria,
liberdade e glória.
Vêem-se espingardas ainda inteiras e
bocados de outras, quebradas em
pequenos artefactos, que perdem a
dimensão mortífera que ostentavam
minutos antes.
Nas árvores próximas pendem uma
espécie de estandartes de morte que
glorificam o que há de mais horrível
na imaginação destruidora e
assassina do homem. Dos corpos
inertes e mutilados, flúem ainda as
últimas gotas de vida que escorrem
pela folhagem, indo por fim
misturar-se com o pó do chão.
O silêncio é agora uma espécie de
hino ao absurdo e ao ininteligível.
Pedrosa está imóvel de olhos fixos
no fundo da cratera, que sepulta
aquele amontoado de ferros. A dois
metros, sentado no chão, um soldado
chora convulsivamente. Um outro,
desarmado, tapa as orelhas com ambas
as mãos, movimentando-se de um lado
para o outro, como se estivesse
perdido, ou não quisesse ouvir um
único som mais daquela tragédia. Uma
atitude de loucura momentânea, de
quem presenciou de muito perto
aquela hecatombe.
…/…
Sem aviso prévio, o Comandante de
Batalhão compareceria na companhia
dois dias depois, irrompendo
intempestivamente pelo
aquartelamento adentro, seguido por
um séquito de três oficiais.
Sem delongas, entrou abruptamente
pelo gabinete do capitão dando-lhe
ordem de prisão, acusando-o de ser
responsável pelos trágicos
acontecimentos vividos na última
operação, insubordinação e
incumprimento do plano da operação.
Como se aguardasse há algum tempo
por um tal desfecho, Pedrosa haveria
de, calmamente, levantar-se da sua
secretária, colocar a boina e
postar-se em continência prolongada,
até que finalmente o Comandante de
Batalhão terminou a ladainha de
acusações e lhe correspondeu. De
seguida pediu licença para ir
arrumar as suas coisas. Não soltou
uma única palavra mais, o que
visivelmente incomodou o Comandante.
– Nem ao menos quer saber porque
razão vai preso?
Pedrosa, que já iniciara o movimento
de saída, parou e, virando-se
lentamente, disse:
– Não meu comandante. As razões são
de Vossa Excelência e, por certo,
são demasiado fortes para merecerem
que se tenha deslocado até aqui,
para pessoalmente me dar voz de
prisão.
O comandante agitou-se de novo,
incomodado com a postura do capitão,
que mais parecia ter ingerido uma
boa dose de calmante, deixando-o
quase insensível à avalanche de peso
hierárquico militar que lhe caía em
cima.
– Mas sempre lhe digo. Está preso
por incompetência operacional,
responsabilidade pelas baixas
ocorridas e atitudes desrespeitosas
para com um superior, no decurso
desta última operação. Além do mais,
por incumprimento do planeamento e
desleixo quanto às normas de
segurança.
Pedrosa retomara a posição de
sentido, entretanto desfeita,
enquanto o comandante continuava a
esmiuçar os motivos da detenção.
Aguardou alguns segundos e por fim
disse:
– Sem querer argumentar sobre os
motivos que conformam a minha
detenção, fazia lembrar a Vossa
Excelência que sou apenas um civil
arvorado em oficial de guerra.
Cumpro o melhor que sou capaz,
aquilo que me ensinaram.
– Cale-se! Não se torne insolente
para não complicar mais as coisas.
Certamente que não foi isto que lhe
ensinaram.
– De facto não foi, meu comandante.
Ensinaram-me algo mais. Em quatro
meses de treino operacional, o que
me ensinaram, essencialmente, foi a
obedecer às ordens dos meus
superiores e a morrer pela pátria,
sem questionar razões ou deveres
para tanto sacrifício. O tempo foi
deveras curto para aprender outros
ensinamentos. Contudo, estou em crer
que tenho cumprido, com todo o
rigor, a primeira destas duas
obrigações. A segunda, ainda não
ocorreu, apenas por mera
circunstância, ou falta de melhor de
oportunidade. Mas ao ritmo a que
estamos a honrar a dedicação à
pátria, estou em crer que já não
tardará muito.
O comandante olhou furiosamente
Pedrosa nos olhos, sem balbuciar
palavra. O indicador direito
mantinha-se ainda em riste, como se
estivesse pronto a disparar algo
mortífero. Os olhos esbugalhavam-se
proeminentes para fora das órbitas.
As faces enrubesciam de cólera, como
se de dentro do corpo algo reprimido
quisesse sair e explodir. Havia
formações de espuma que lhe
afloravam aos cantos da boca. Como
que buscava palavras ou ideias que
não apareciam adequadas ao cenário
que se desenrolava no gabinete do
capitão. Um desejo de fuzilamento
imediato, ao jeito das guerras de um
passado não muito longínquo, e muito
presentes no seu espírito, ter-lhe-á
aflorado à consciência, em forma de
um lampejo de ficção, logo
apaziguado por um chamamento brusco
à realidade, que o leva a irromper
altivo e abrupto.
Como que regressado a uma falsa
calma de difícil controlo: – Vá-se
arrumar e apresente-se!
A notícia espalhou-se pelo
aquartelamento como areia fina
apertada em punho fechado. Cresce um
burburinho no exterior, que aos
poucos vai sendo audível no interior
do gabinete, onde ocorre a detenção
do capitão.
O comandante é informado, por um dos
oficiais que o acompanhava, que há
agitação no seio dos soldados, ao
que este responde com um misto de
alguma inquietação e altivez mal
dissimuladas:
– Porquê? Há mais alguém para fazer
companhia ao capitão? Vejam lá.
Tenho lugar para levar mais meia
dúzia de presos.
Pedrosa apresenta-se minutos depois,
transportando um pequeno saco.
O comandante, sempre altivo na sua
farda impecavelmente cintilante,
determina de imediato que se ponham
em marcha. Mas não chegam a dar mais
de dois passos firmes e decididos
fora do edifício.
Lá fora, a alguma distância,
dispostos numa meia-lua mal
ordenada, e de arma na mão, está
praticamente toda a companhia
vestindo camuflado. Era como se se
dispusessem para mais uma operação
no mato, ou prontos para uma guerra,
cujo desfecho final se lhes
apresentava ainda impreciso, tal
como o inimigo, cujo rosto jamais
conseguiram vislumbrar.
O comandante como que paralisa
frente aos soldados. Passam-se
breves momentos, instalando-se um
inusitado silêncio que ninguém ousa
quebrar. Por fim o comandante avança
alguns passos, aparentemente firmes,
toma a sua pose habitual de
sobranceria em relação a tudo e
todos, e pára, mão na cintura em ar
de desafio. – Quem vos comanda? O
que é que pretendem?
O silêncio permanece por mais alguns
momentos, deixando no ar a ilusão de
se ouvir a respiração apressada de
quantos ali se encontravam.
É Enguias quem avança três passos
ainda hesitantes, após alguns
momentos de indecisão.
Veste um camuflado, onde se confunde
o sujo com o desbotado, trazendo
descosidos os bolsos laterais junto
à coxa, pendendo desconcertados,
como se chegados de uma refrega de
caserna, que por vezes ocorria no
calor do álcool e da guerra.
Caídas sobre as botas de lona –
laceradas pelas espinheiras do mato
– as calças descaem atrás arrastando
no chão. Dois ou três botões mal
abotoados ajudam a descompor a
camisa que se abre no peito e deixa
meia fralda de fora. O desmazelo com
que se desarruma no fardamento,
corresponde ao desalinho interior
que o deixa aturdido e desconcertado
de ideias, sem recobro de uma certa
intempestividade que o
caracterizava, momentaneamente
aplacada sob o sol escaldante
daquela manhã.
A postura, essa mantém a altivez e
determinação de sempre. Cabeça
levantada e peito proeminente, qual
proa de embarcação afrontando as
ondas da praia de um mar pérfido que
o desafiava incessantemente em cada
manhã de início de faina.
Puxando a culatra atrás, com o
habitual gesto da palma da mão,
introduz uma bala na câmara, cujo
som metálico característico ficará
na memória de todos quantos privaram
de perto com a G-3 no palco da
guerra. Um troado seco que marcava o
momento determinante em que aquele
utensílio passava de objecto
decorativo de parada militar a
verdadeiro instrumento letal, o
qual, com um simples gesto, galgava
a ténue fímbria que separa a vida da
morte.
Não aponta a G-3 ao comandante. Mas
mantém a arma segura com ambas as
mãos, evidenciando prontidão para a
usar. Uma atitude eloquente que
dispensava a formulação de dúvidas
que melhor esclarecessem as
intenções.
– Ninguém nos comanda, meu
comandante. Estamos aqui para lhe
dizer que o nosso capitão fica. Para
o levar vai ter que nos prender a
todos. Vai ter que prender a
companhia inteira. E também terá que
dar voz de prisão a todos os que
morreram há dois dias, porque, se
fossem vivos, também estariam aqui
ao nosso lado.
…/…
Deixemos em sossego as três
últimas naus que, moribundas, pairam
ainda sem vento frente ao Restelo…
… Restelo, onde jaz agora,
petrificada e fria, a memória dos
milhares de mártires que pereceram
sem glória na derradeira batalha de
África, sepultura comum que
simboliza com propriedade o que
resta do império de além-mar e
glorifica as vozes dos eternos
velhos do Restelo, quando, naquela
mesma praia, se erguiam num mau
presságio que, embora longínquo,
acabou por conformar-se com a razão
e a sabedoria.
Uma chama tremeluzente e amarelecida
ilumina agora o que restou de cinco
séculos de soberania sobre cafres,
mares e medo do desconhecido.
O monumento de homenagem aos
Combatentes do Ultramar, erigido em
Belém, é um local frio, silencioso e
sombrio, que simboliza com
severidade o epílogo de uma das
páginas mais negras da nossa
História.
E nesse sentido, um marco que alguns
desejam apagar e esquecer, mas que
os mais de nove mil nomes cinzelados
na pedra dura e fria jamais irão
permitir que aconteça.
[2]
Do povo banto da Cafraria – África
Meridional. Proveniente do árabe
cafir = infiel. Termo usado ao tempo
das descobertas para denominar os
indígenas que se iam encontrando nas
costas de África nas arribações que
se faziam a terra em busca de água e
alimentos.