Imagens e
restantes elementos cedidos por um
Veterano
Rui Neves da Silva
Rui
Neves da Silva, nasceu em 1938 em Espinho: no início da
década de 1960 fez o COM na EPA (Vendas Novas), onde
teve como instrutor o (então) tenente de artilharia
Gabriel Augusto do Espírito Santo; depois conheceu no
RAL1-Sacavém, o (então) alferes de artilharia Ernesto
Augusto de Melo Antunes; em Jul70, tenente miliciano na
disponibilidade, foi novamente chamado às fileiras, para
fazer o CPC na EPI-Mafra; no início de 1971, oficial do
QEO do Exército, foi mobilizado pelo BC10-Chaves e
formou uma subunidade de infantaria, com destino ao
reforço da guarnição normal da RMA; em 15Mai71 embarcou
no NTT "Vera Cruz" rumo a Luanda, como capitão miliciano
comandante da CCac3370; após desembarque seguiu para o
sudoeste de Angola, aquartelando em Gago Coutinho (onde
reencontrou Melo Antunes capitão comandante de uma
subunidade de artilharia, e conheceu o alferes miliciano
Lobo Antunes, médico de um batalhão ali estacionado); em
Mar72 foi com a sua subunidade transferido para o
noroeste (onde reencontrou Melo Antunes, recém-promovido
a major), e ficou aquartelado sucessivamente no Quelo e
em Madimba; em Abr73, após intensa actividade
operacional, regressou, sem baixas de nota na sua
subunidade; faleceu em 24Out2009, em Lisboa).
O
seu primeiro contacto com a arte literária ocorreu em
1958, quando, com 18 anos publicou clandestinamente um
opúsculo onde, em oitavas de incipiente verso heróico,
criticou o establishment na instituição de ensino que
então frequentava. Com uma formação académica superior
ligada à contabilidade e à economia das empresas, a sua
carreira profissional desenvolveu-se no âmbito da
auditoria financeira e revisão legal das contas. Após o
casamento, e dada a necessidade de complementar o
ordenado que auferia como júnior de auditoria numa
empresa britânica da especialidade a operar em Portugal,
Rui Neves da Silva traduziu, ou escreveu sob pseudónimos
diversos, para a extinta Agência Portuguesa de Revistas,
dezenas de livros que ele próprio desde sempre
caracterizou como literatura de sobrevivência.
A primeira ingressão séria no mundo literário deu-se em
2007, com a publicação de - Milicianos, Os Peões das
Nicas - obra em que nos deu a sua versão, em parte
alicerçada no conhecimento presencial dos acontecimentos
e na sua experiência pessoal, do verdadeiro papel dos
capitães milicianos na guerra do Ultramar e apresentou o
seu ponto de vista sobre as verdadeiras razões que
motivaram os militares de carreira a desencadear o golpe
militar que derrubou o Governo, em 25 de Abril de 1974.
Embora a vida militar o atraísse e no seio da família
castrense tivesse os seus ícones (Ernesto Melo Antunes,
de quem foi camarada no RAL1 e confidente dos seus já
então afirmados anseios ideológicos nos convívios
acontecidos em zonas de guerra em Angola, e Gabriel
Augusto do Espírito Santo, antigo Chefe do Estado-Maior
General das Forças Armadas, que com a patente de Tenente
foi seu instrutor no Curso de Oficiais Milicianos, em
Vendas Novas), Rui Neves da Silva retomou a sua carreira
profissional de auditor financeiro numa empresa
internacional sem contudo perder de vista a promessa
feita a si próprio de um dia vir a escrever um romance
em que o leitor pudesse, entre acontecimentos reais ou
de realidade possível, intuir a verdade sobre a
participação dos capitães milicianos nas guerras do
Ultramar e sobre o nefando papel dos militares de
carreira, na hora de a Pátria, reconhecendo merecimento
aos seus iguais, ir compensá-los com igual estatuto.
"Milicianos, os
Peões das Nicas"

"Milicianos, os Peões das Nicas"
autor: Rui Neves da Silva *
editor: Prefácio
1ªed. Lisboa, 24Abr2007
730 págs
preço: 25 €
ISBN: 989-9521-30-8
dep.leg: PT-254836/07
Introdução do livro
"Milicianos - Os Peões das Nicas"
Quis iniciar a apresentação do meu livro
com a seguinte citação de um Papa que me pareceu
adequada à minha condição de escritor outsider: “Io no
sono un letterato...”. Só que, tendo-a lido algures sem
a preocupação na altura de fixar o nome do Papa seu
autor, me deparei depois com a inesperada dificuldade de
não conseguir, em acto de subsequente pesquisa na net,
denominar o Sumo Pontífice que na língua de Dante a
proferiu; e incomodou-me recorrer à citação sem lhe
precisar a origem e explicar as circunstâncias em que
foi proferida.
Contrariado embora pelo contratempo, acabei a pensar que
talvez esse mal tivesse vindo por bem. Na realidade, por
que carga de água haveria eu de afirmar que não sou um
literato quando a evidência dessa minha condição
ressalta da leitura da pretensa alegoria que constitui o
prólogo do livro? Seria, convenhamos, uma afirmação
pleonástica. (A não ser, claro, que o simples facto de
designar carneiros por cavicórneos me qualifique aos
olhos dos leitores como um homem erudito e, sendo-o,
isso baste para assegurar que o exercício alegórico saiu
da pena de um literato).
Por outro lado, recorrer à dita citação, e demais no
intróito do livro, poderia ser entendido pelos meus
leitores como uma tentativa da minha parte de beneficiar
da sua indulgência. Benefício que, diga-se de passagem,
até seria justo... Num país onde os intelectuais, os
letrados, os filósofos, os teólogos, os latinistas e os
exegetas cultivam a literatura em regime de continuidade
e enchem de verdadeiras pérolas literárias os
escaparates das livrarias, por que não haveria um
adventício como eu, escritor em part-time e virgem de
obras publicadas, de ser merecedor de uma boa dose de
indulgência?
Mas não; em nenhuma circunstância pediria a vossa
indulgência, caros leitores. Nem muito menos a
aceitaria. A indulgência deu cabo do nosso País.
Passámos a vida a desculpar as asneiras dos políticos e
em resultado da nossa atitude complacente temos hoje uma
cáfila de ineptos a orientar-nos os destinos. Devido a
esta atitude ficámos amarrados à mediocridade e acabámos
reféns de padrões de qualidade que não são os nossos.
Devíamos ter sido mais exigentes com a classe política
que emergiu após o regresso aos quartéis dos militares
envolvidos no 25 de Abril; como devíamos ter sido menos
condescendentes com os capitães que, surgindo como
salvadores da Pátria, após o golpe militar se arrogaram
o direito de controlar e manietar os políticos
incipientes.
Indulgência foi coisa que não faltou aos tenentes
milicianos que em 1970 frequentaram, nos meses de Julho
a Outubro, o Curso de Comandantes de Companhia. Dada a
circunstância de, por escassez de meios, ter sido
forçada a recorrer aos milicianos para estes realizarem
o trabalho que competia aos capitães do quadro
permanente, a hierarquia militar teve para connosco,
desde o instante da nossa entrada na Escola Prática de
Infantaria, uma atitude de tolerância que a partir de
certa altura se tornou insolente. É que, ao repetir-se
de forma continuada a excessiva complacência do comando
da EPI em relação a actos de indisciplina e de
desobediência praticados no decurso da instrução por
alguns dos tenentes milicianos, tanta indulgência
assumiu o carácter de um insultuoso atestado de
menoridade mental.
Ora, falando na generalidade, esse papel de
“coitadinhos” não agradou à maioria dos tenentes
milicianos... A hierarquia não tinha que ser
condescendente com os futuros comandantes de Companhia;
tinha, isso sim, de compreender que a nossa
sensibilidade não estava blindada contra as diatribes
dos instrutores, incapazes de aceitar que em alguns
casos havia diferenças de uma dezena de anos entre nós e
os seus recrutas habituais.
Curiosamente, foi essa inaceitável tolerância que acabou
por despertar os tenentes milicianos para a necessidade
de ser exigentes consigo próprios. Chegada a “hora da
verdade”, neste âmbito definida como o instante em que
os soldados que iríamos comandar em zonas de guerra nos
reconheceriam ou não como chefes incontestados e
responsáveis pelas suas vidas, teríamos de provar que
éramos tão bons como os melhores. Teríamos ademais de
estar conscientes de que nenhuma desculpa serviria para
justificar as nossas incapacidades. Produtos sucedâneos?
Nem pensar. Pelo menos nesse aspecto, teríamos de ser
tão genuínos como os profissionais que iríamos
substituir.
Não foi fácil a conversão. Era grande a diferença de
mentalidades e curto o período de harmonização. Todavia,
o produto final saído do Curso de Comandantes de
Companhia ministrado na Escola Prática de Infantaria era
maioritariamente de qualidade garantida. Não estariam os
futuros capitães milicianos preparados para utilizar nas
suas relações com os soldados o tom dogmático dos
militares de carreira, que essa capacidade apenas se
adquire com anos de prática, mas o que nos faltava em
autoritarismo sobrava-nos em senso comum. E foi essa
faculdade que sobressaiu na avaliação posterior do nosso
desempenho nas três frentes de guerra.
Houve excepções? Naturalmente. Nem todas as personagens
que fluem pelo enredo do meu romance são gente
recomendável... E acreditem que foram modeladas mediante
a utilização de fragmentos extraídos de pessoas bem
reais, de homens que, como eu, fizeram parte desse grupo
de tenentes milicianos. No entanto, as personagens
moralmente bem formadas são em maior número, o que
também, e felizmente, reflecte a realidade do Universo.
Quem pessoalmente me conheça vai procurar encaixar-me
numa das personagens. Não será tarefa fácil, pois
retalhei-me física, psíquica e moralmente antes de
disseminar-me aos bocados por todas elas. Daí que só os
meus amigos, ou os meus conhecidos mais chegados, irão
descobrir em que personagem se aloja cada parte
retalhada de mim.
Foi em Angola que combati. No Leste e no Norte.
Orgulho-me de ter feito parte do único exército do mundo
que venceu uma guerra subversiva. Quando saí desta
província ultramarina os três movimentos
independentistas estavam de rastos... O movimento mais
forte, o MPLA, tinha perdido o controlo das populações e
mostrava-se incapaz de recuperar as áreas de influência
perdidas. Depois... Bem, depois foi o que se viu.
Entendi que não devia terminar esta introdução sem uma
referência à bibliografia a que recorri para precisar
alguns aspectos relacionados sobretudo com operações
militares e locais onde se desenrolaram, nomeadamente:
da excelente Colecção Batalhas de Portugal, Guiné –
Soldados uma vez sempre soldados (da autoria do Coronel
Nuno Mira Vaz), Tribuna 2003, Moçambique – Operação Nó
Górdio (da autoria do Coronel Carlos de Matos Gomes),
Prefácio 2002, e Angola – Vitória Militar no Leste (da
autoria do Tenente-coronel António Pires Nunes),
Prefácio 2002; Estudos sobre as Campanhas de África
(1961-1974), colectânea do Instituto de Altos Estudos
Militares editada pela Atena em 2000; e Angola –
Anatomia de uma Tragédia (da autoria do General Silva
Cardoso), Oficina do Livro 2001.
Outro aspecto que considero dever focar prende-se com a
eventualidade de alguns dos locais onde “instalei”
unidades militares terem sido efectivamente ocupados nos
anos de 1971 a 1973 por Companhias ou Batalhões que nada
têm a ver com o enredo do meu romance. Se isso
acontecer, peço desde já aos militares que por lá
mourejaram que me perdoem a ocupação abusiva do seu
espaço.
Rui Neves da Silva, Abril de 2007
Prefácio do livro
"Milicianos - Os Peões das Nicas"
É a primeira vez que em meio século de
ligação à literatura, como autor, jornalista e editor,
faço um prefácio para um livro em que me revejo como se
fosse eu próprio a escrevê-lo. E este não é um livro
qualquer. O original que me chegou para avaliação tem
727 páginas. Presumo que depois de formatado ainda possa
ficar mais volumoso. Tão pouco conheço o Autor do
romance. Apenas o identifico pelo endereço electrónico
que vem registado na ficha técnica. Nuno Júdice,
conceituado especialista das causas literárias, defende
que a interpretação de um livro começa pela biografia do
autor.
Em Setembro de 2000 prefaciei «Nostalgia entre Angola e
o «Puto», de Angelino Pereira. Aí afirmei que «começam a
ser horas de dar voz àqueles que mais fortes razões têm
para se fazerem ouvir, ou seja, os que foram os
verdadeiros intérpretes do espectáculo, não por
conveniência profissional ou ideológica, mas por
imperativo patriótico que não patrioteiro». Quem assinou
esse romance de 384 páginas estivera lá, sem complexos,
cumprindo uma comissão de serviço militar obrigatório.
Era uma autobiografia, concebida e testemunhada pelo
repórter da linha da frente.
É, pois, com redobrado júbilo que tenho nas mãos, para
idênticos fins, um novo volume autobiográfico, quase com
o dobro das páginas, bem pensado, muito bem arquitectado
e excelentemente escrito. Até no título há magia: «Os
Peões das Nicas», admiravelmente seleccionado numa
expressão popularizada que caracteriza, de forma
inconfundível, aquele que foi o papel dos milicianos,
sargentos e (sobretudo) oficiais.
De Rui Neves da Silva apenas sei o nome e o conhecimento
que resulta da leitura da personagem que desfila neste
romance. Ele próprio previne o leitor: «quem
pessoalmente me conheça vai procurar encaixar-me numa
das personagens. Não será tarefa fácil pois retalhei-me
física, psíquica e moralmente antes de disseminar-me aos
bocados por todas elas. Daí que só os meus amigos irão
descobrir em que personagem se aloja cada parte
retalhada de mim». Mas não vai ser difícil identificar o
artífice deste oportuno e gratificante relato de guerra
para o qual «em circunstância alguma pediria a vossa
indulgência. A indulgência deu cabo do nosso País.
Passámos a vida a desculpar as asneiras dos políticos e
em resultado da nossa atitude complacente temos hoje uma
cáfila de ineptos a orientar-nos os destinos». E
justifica: «ficámos amarrados à mediocridade e acabámos
reféns de padrões de qualidade que não são os nossos.
Devíamos ter sido mais exigentes com a classe política
que emergiu após o regresso aos quartéis dos militares
envolvidos no 25 de Abril; como devíamos ter sido menos
condescendentes com os capitães que, surgindo como
salvadores da Pátria, após o golpe militar se arrogaram
o direito de controlar e manietar os políticos
incipientes».
Destas denúncias resulta o argumento deste projecto
editorial que vai irritar muita gente pela coragem da
argumentação, como vai repercutir a opinião e a imagem
carcomidas dos bodes expiatórios do que,
verdadei-ramente, foi a Guerra do Ultramar.
Rui Neves da Silva é peremptório: «indulgência foi coisa
que não faltou aos tenentes milicianos que em 1970
frequentaram o Curso de Comandantes de Companhia para
realizarem o trabalho que competia aos capitães do
quadro permanente. A hierarquia militar teve para
connosco uma atitude de tolerância que a partir de certa
altura se tornou insolente…Esse papel de «coitadinhos»
não agradou à maioria dos tenentes milicianos. Chegada a
«hora da verdade», teríamos de provar que éramos tão
bons como os melhores». E é essa a demonstração que o
Autor faz, desassombradamente, nas páginas de Os Peões
das Nicas.
A estrutura do romance é convidativa para a leitura.
Numa tríade muito feliz, sintetiza as traves mestras da
obra: O livro Primeiro classifica a Escola Prática de
Infantaria como «Fábrica de Oficiais». No livro Segundo
fala da «Guerra: Fábrica de Heróis». Já no Epílogo,
desmonta a «Revolução: Fábrica de Equívocos».
A trilogia das «fábricas» sintetiza-se no nó górdio que
os próprios «Peões das Nicas» anteviam, pela
desorientação em que os tais capitães do quadro
permanente se deixaram enredar contra os milicianos. Não
foram os Peões das Nicas que perderam a guerra nas
diversas frentes de combate. Nem foram eles que
entregaram a bandeira aos inimigos, aos ombros dos quais
impuseram os galões da rendição. «A liberdade que a
revolução de Abril trouxera, estava a ser utilizada para
se cometerem os maiores abusos. A confusão jorrou como o
caudal da Barragem de Cabora Bassa se lhe abrissem as
comportas. E essa balbúrdia só terminou em 25 de
Novembro de 1975. Esse era o pressentimento do
personagem «Miguel Chaves quando, nesse dia, se dirigia
no seu pequeno Austin Cooper em direcção à ponte 25 de
Abril. Os comunas tinham encolhido as garras quando
viram a extrema-esquerda a ser derrotada». Quando Miguel
Chaves acelerou, uma das «boas mãos» de Otelo disparou
uma rajada de G3. «Mistura Escura», personagem que tinha
estado em anteriores barricadas da esquerda radical,
fora o autor dos disparos. O pequeno veículo batera
violentamente contra a protecção metálica da ponte. A
turbamulta correu para junto da viatura. «Dois dedos do
«valentão» tocaram um pequeno objecto que Miguel Chaves
trazia preso a um fio de prata que lhe rodeava o
pescoço. Com um violento esticão, Mistura Escura
apropriou-se da Cruz de Guerra que aquela vítima ganhara
em Angola, a qual, desde então, usava ao peito como
símbolo não só da sua coragem como da sua expiação; e
exibiu-a aos olhos dos circunstantes como desculpa para
o seu crime, comentando com uma nota de desprezo na voz:
-Era um fascista… Já não faz mal a ninguém!»
Como oficial miliciano ranger que combateu em Angola,
como fundador da Associação Nacional dos Combatentes do
Ultramar, do Movimento 10 de Junho e inspirador do
Monumento aos Combatentes, gostaria de ser eu a assinar
um relato de guerra tão prenhe de objectividade, com tão
perfeita arquitectura e em tão vivo, expressivo e
mavioso estilo. Já se publicaram muitas dezenas de
volumes com semelhante temática. Nunca me vi tão
representado como neste Peões das Nicas. Já era tempo de
surgir a bíblia dos milicianos. Aqui está ela pela
imaginação escorreita, inspirada e justa de Rui Neves da
Silva, a quem rendo a minha homenagem e gratidão.
Barroso da Fonte (Director do Jornal Poetas &
Trovadores)
Discurso de lançamento
do livro "Milicianos - Os Peões das Nicas"
Palácio da Independência, 24 de Abril de
2007
Para aqueles que se atrevam a julgar-me um escritor fora
do prazo de validade, eu gostaria de lhes dar o exemplo
de Juvenal, o poeta latino moralista da imoralidade que
viveu em Roma no século I da nossa era. Juvenal começou
aos quarenta anos a escrever as suas Sátiras e só as
publicou quando já tinha oitenta. Isto faz-me acalentar
a esperança de que não há um crepúsculo na produção e
publicação de uma obra literária senão o que decorre da
morte da imaginação e da incapacidade de juntar e dar
sentido às palavras.
O livro que hoje vos apresento começou a ser registado
para memória futura em Junho de 1970, no preciso
instante em que recebi a intimação para me apresentar em
Mafra e frequentar na Escola Prática de Infantaria o
Curso de Capitães Milicianos. Como antes acontecera a
milhares de Portugueses, o meu destino seria o Ultramar;
só que ao invés de partir para a guerra com o objectivo
único de me manter vivo e regressar mental e fisicamente
são e escorreito para junto dos meus, o Estado, e em sua
representação a hierarquia militar, conferia-me a
responsabilidade de, ademais de sobreviver, garantir a
sobrevivência de 165 outros Portugueses que não me
conheciam de lado nenhum.
A enormidade desta decisão da hierarquia militar,
sobretudo por ter sido tomada à revelia do conhecimento
da personalidade dos indivíduos a quem assacava essa
responsabilidade, condicionou o comportamento inicial
dos futuros capitães milicianos durante o período em que
receberam instrução em Mafra.
Os tradicionais valores da Instituição, como a
disciplina, a obediência e a hierarquia, foram
ostensivamente rejeitados por quem se sentia
espartilhado por uma miserável chantagem moral. Quando
porém chegámos à conclusão de que seríamos nós a viver
com os fantasmas das eventuais vítimas da nossa atitude
de raivosa recusa e nos apercebemos de que o nosso
alheamento da realidade da guerra iria acarretar-nos
futuros problemas de consciência por não estarmos
suficientemente preparados para comandar homens que
confiavam em nós, passámos a aceitar que nos
transformassem em centuriões e nos promovessem à
condição de defensores do Império.
Porquê o título MILICIANOS – Os Peões das Nicas? A
expressão “pião das nicas” (com um i) é usada sobretudo
no Minho para designar o indivíduo “que sofre as
consequências dos males que outro faz”… Ou seja, algo
parecido com o “bode expiatório”. Neste sentido, os
milicianos foram os piões velhos e escalavrados
oferecidos às ferroadas (nicas) dos piões
representativos das elites militares. Entendi porém que,
escrevendo pião com um e desalinhado das restantes
letras, conseguiria transmitir ademais uma mensagem
subliminar: a de que, tal como no xadrez, os milicianos
foram peças menores de um jogo, os peões que as
hierarquias militares deslocavam nos tabuleiros da
guerra para protegerem, entre outros, o rei e os bispos.
A entrada dos futuros capitães milicianos na Escola
Prática de Infantaria, que como sabem funcionava e
funciona no Convento de Mafra, é descrita alegoricamente
no Prólogo como o movimento de um rebanho de carneiros a
caminho do redil. Não desistais da sua leitura, mesmo
que os vocábulos e o estilo utilizado vos pareçam
invulgares. São apenas 7 páginas e ajudar-vos-ão a
compreender o estado de espírito desses homens quando
pela primeira vez enfrentaram o corpo de oficiais que
nos quatro meses subsequentes iriam tentar
subverter-lhes a mente, quebrar-lhes a vontade e
derrear-lhes o corpo.
Será porém através da leitura do Livro Primeiro que
podereis começar a acompanhar as personagens que criei e
destaquei daquele universo de homens angustiados. A sua
criação obedeceu sobretudo à imaginação, que em épocas
de crise, segundo Einstein, é mais importante do que o
conhecimento. É claro que em termos de hardware e
software, a maior parte das minhas personagens existiu,
mas por uma questão de respeito pela sua privacidade
evitei que o invólucro e o conteúdo se encaixassem
correctamente, sobretudo por os comportamentos desses
ex-camaradas não terem sido os mais apropriados.
Como afirmou Nicolas Boileau, a verdade pode às vezes
não ser verosímil. Na realidade, a resistência inicial
promovida por aquele grupo de homens (no qual me incluí
e de que me afastei para sobre eles escrever com
imparcialidade) assumiu contornos de tanta agressividade
e obscena insolência que ainda hoje me pergunto se de
facto as coisas aconteceram assim como as relato ou se
apenas germinaram na minha imaginação por ser assim que
eu queria que elas tivessem acontecido.
Estou porém à vontade para vos fazer esta confissão
porque, embora fluindo através de factos históricos, o
livro que hoje vos apresento não é um livro histórico. É
um romance de ficção cuja acção decorre enquadrada na
História, sim, mas sem a veleidade de pretender ser um
livro histórico na verdadeira acepção do conceito. E
graças a Deus que não o é, pois os livros históricos têm
tendência a abordar apenas os grandes feitos e os seus
protagonistas principais, esquecendo os relatos
históricos dos pequenos protagonistas e os aspectos
humanos das questões relatadas.
MILICIANOS – Os Peões da Nicas é um romance onde as
situações reais surgem amalgamadas com situações de
realidade possível, mas não julgueis que será fácil
distingui-las… E o que vos parecer inverosímil à luz de
um conceito de normalidade pode assumir verosimilhança
quando a vossa avaliação for precedida de uma análise às
condições em que o facto avaliado ocorreu.
Podereis considerar que a estroinice e as atitudes menos
nobres de homens afastados da família e mobilizados para
a guerra poderiam ter sido literariamente omitidas, pois
a sua divulgação prejudica a imagem da seriedade que se
exigiria a futuros capitães do Exército. Mas deixar
passar a mensagem de que esses homens se portaram como
meninos de coro enquanto o seu drama os devorava por
dentro seria um atentado à verosimilhança da minha
narrativa.
O Livro Segundo é dedicado à guerra. Através da leitura
das 320 páginas que tratam deste assunto podereis
acompanhar as aventuras e desventuras das minhas
personagens em terras de Angola, Moçambique e Guiné.
Todos heróis? Nem pensar! Na generalidade, as minhas
personagens levaram para África muito poucas virtudes e
grandes e variados defeitos, pelo que a História não irá
falar deles. Nos momentos em que não combatiam a
guerrilha, os capitães milicianos entretinham-se a criar
situações que levassem os seus soldados a matarem o
tédio, o seu maior inimigo. E a ocultarem as suas
emoções. Tinham saudades de casa? Obviamente que tinham!
Mas essa e outras emoções, tais como o medo e o
desespero, não podiam sequer exteriorizá-las diante dos
homens que comandavam, sob pena de lhes transmitirem o
seu próprio desalento eo desassossego em que
permanentemente viviam.
Penaram muito? Certamente! Mas muito mais penaram as
mulheres que os tinham visto partir e que à noite,
deitados os filhos, viviam sozinhas o pior dos medos,
que é o que provém da imaginação.
Foram muitos os heróis que receberam medalhas premiando
a sua coragem na guerra do Ultramar, mas não me recordo
que alguém tivesse homenageado os milhares de heroínas
que na retaguarda os apoiavam, chorando em silêncio o
seu desespero e disfarçando o medo de não os verem
regressar.
Depois é o Epílogo, em que após o regresso da guerra as
minhas personagens enfrentam os problemas do temporário
desenraizamento. E vem a revolução, que defini como uma
fábrica de equívocos.
Como o Dr. João Barroso da Fonte deu a entender no seu
generoso Prefácio, o meu livro vai lançar algum
desconforto em muita gente. Na hierarquia militar, que
não gosta de ouvir afirmar que o 25 de Abril teve a sua
origem numa reclamação de mesquinho cariz
corporativista; nos historiadores, que fizeram dos “mal
preparados capitães de hipermercado” (SIC) os
“piões-das-nicas”; e nos políticos, que continuam a
assobiar para o lado e não reconhecem que ainda há gente
que sofre os males de uma guerra que muitos deles só
viveram de longe e sob o estatuto de exilados em Paris,
Londres e Bruxelas. Jean-Paul Sartre tinha razão ao
afirmar que nas guerras que os ricos fazem são sempre os
pobres que morrem.
E o desconforto dos militares directamente envolvidos no
derrube do regime marcelista em 25 de Abril de 1974
crescerá perante a minha convicção, que fundamento, de
que eles nunca quiseram ir mais longe do que conseguirem
a anulação de uma lei que os desfavorecia em relação aos
milicianos. Atingido o seu objectivo, só não recuaram e
regressaram aos quartéis porque tal não lhes foi
permitido… O Partido Comunista Português aproveitou a
recusa dos militares em partilharem com os milicianos os
benefícios e os riscos da sua profissão para,
manipulando-os nas assembleias através de militantes
seus de há muito infiltrados nas forças armadas, os
levarem a derrubar o regime e conquistar o poder. Em
verdade, os militares de Abril não passaram do braço
armado do PCP.
Nós, os que sobreviveram à guerra e à indiferença a que
depois nos votaram, somos os remorsos vivos dos
responsáveis pelo tempo perdido e pelos sofrimentos
passados em terras que depois reconheceram, mas tarde de
mais, que afinal não eram nossas.
Assumo-me através deste romance como uma testemunha da
História a tentar evitar que nos esqueçam. Mas se é
importante que se escreva sobre a guerra do Ultramar
para que a memória colectiva do nosso povo não esqueça
os muitos milhares de portugueses que por lá morreram, é
igualmente importante que a verdade seja revelada: o 25
de Abril não resultou de um romântico golpe militar
levado a cabo por homens iluminados imbuídos da generosa
intenção de restituir a liberdade e a democracia aos
portugueses, mas por forças políticas que os usaram com
o deliberado intuito de se aproveitarem de sua
ingenuidade para, manipulando-os a seu bel-prazer,
instaurarem em Portugal uma ditadura de esquerda. De
que, como estareis recordados, escapámos por pouco.
A verdade, ao contrário do crime, não prescreve. E,
desta feita, a citação é minha.
Rui Neves da Silva (O autor)