Elementos cedidos por um colaborador
do portal UTW

Abel de Jesus Carreira
Rei
Abel de Jesus Carreira Rei, nascido a 30
de Março de 1945 em Maceira (freguesia do concelho de
Leiria), filho de um operário da vidreira "Santos
Barosa", frequentou a escola primária em Picassinos e
radicou-se no lugar da Embra; iniciou-se a trabalhar com
dez anos, ao balcão de uma mercearia no centro da
Marinha Grande; e aos quinze, era serralheiro civil.
Em
1 de Fevereiro de 1967, tendo sido mobilizado pelo
Regimento de Artilharia de Costa (RAC -Oeiras) para
servir Portugal na Província Ultramarina da Guiné,
embarcou em Lisboa no NTT 'Uíge' rumo a Bissau, como 1º
Cabo integrado no 3º pelotão da Companhia de Artilharia
1661 (CArt1661) «CORAGEM ESPERANÇA».
Em 19 de Novembro de 1968 iniciou a torna-viagem, a
bordo do NTT 'Uíge'.
-
«A minha missão não foi das mais árduas;
outros houve que sofreram muito mais. Para
esses, irá decerto o carinho de todos
quantos nos rodearam através das escassas
notícias referidas além-mar.
Nada paga tão imensa alegria, de podermos
regressar ao lar, e esquecermos, tantas e
tantas horas, que passámos sem dormir,
atentos ao inimigo, e depois de o termos
aguentado, acarinharmos os nossos camaradas
feridos, ou chorarmos os mortos. A estes
últimos: os heróis desconhecidos desta
guerra, aqueles que mais ninguém recordará,
a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos,
a estes, a minha modesta homenagem que se
resume a desejar-lhes Eterno Descanso.
Irmãos de meses difíceis desta tropa, a
minha lembrança por vocês, perdurará em mim
eternamente, pois eu podia ter sido um de
vós!… »
Abel
de Jesus Carreira Rei
Clique no sublinhado que
se segue para visualização do conteúdo
Companhia de Artilharia 1661: Os mortos em campanha
O livro:
"Entre o Paraíso
e o Inferno (de Fá a Bissá) - Memórias da Guiné
1967/1968"

Ficha técnica:
título: "Entre o Paraíso e o Inferno (de Fá a
Bissá) - Memórias da Guiné 1967/1968"
autor: Abel de Jesus Carreira Rei
editor: (o Autor)
edição:
1ªed. Lousã, 2002
171 págs
dimensões:
21 x 15 cm
preço: 11,50€ (incluindo portes de envio)
(aquisição)
depósito legal: PT-182577/02
Recensão:
Diário escrito na Guiné entre
princípios de 67 e fins de 68.
– "Entre o Paraíso e o Inferno" é o titulo do livro de
memórias da Guiné, escrito por Abel Rei e cuja sessão de
lançamento decorreu no passado dia 22 de Fevereiro 2003,
com a presença de um grande número de ex-combatentes e
amigos do autor.
O auditório da Biblioteca Municipal da Marinha Grande
foi pequeno demais para acolher as dezenas de pessoas,
que não abdicaram de marcar presença na sessão de
apresentação do livro.
O presidente da Liga dos Combatentes, Tenente General
Júlio Oliveira, esteve presente e manifestou a
disponibilidade da Liga em "promover e apoiar obras e
factos que estão inseridos nos estatutos da Liga, uma
vez que esta já conta com quase cinquenta mil sócios",
afirmou, não deixando de realçar que "foi com prazer que
redigi o prefácio deste livro".
Vitor Hugo Beltrão, por seu turno, analisou o livro.
Para o historiador, o autor "escreveu história", que é
confirmada com os documentos que possui, escritos no
dia-a-dia da sua passagem pela Guiné, "e tudo quanto
relata é verdade, mas também ficou muito por dizer".
"Esta é a história que escrevi, não a que gostava de ter
escrito", declarou o autor. "O livro retrata uma fase da
minha vida e pretende de uma forma modesta contribuir
para a memória dos que fizeram a minha geração",
conseguiu afirmar ainda Abel Rei, com a voz embargada
pela emoção. Apesar de ter escrito previamente a sua
alocução, confessou que "ainda hoje me comovo ao ler o
que escrevi e já passaram mais de trinta e cinco anos".
(in http://abelrei.no.sapo.pt/ )
Excertos:
- «(Esta é a história verdadeira que eu
escrevi: não a história que eu gostaria de escrever.)
Que me sejam perdoados os imensos erros por mim
produzidos, e as introduções de crioulo, com a única
atenuante, destas breves passagens terem sido escritas,
para minhas recordações pessoais.»
01/02/1967 - Navio Uíge (Oceano Atlântico)
São dezasseis horas e cinquenta minutos, do dia 1 de
Fevereiro do ano de mil novecentos e sessenta e sete. Já
só se avistam águas, além deste navio – o Uíge. Estas são
as primeiras letras que me saem dos dedos após o
embarque, no cais da Rocha Conde de Óbidos. Depois de um
almoço que me deixou estupendamente satisfeito, foi um
banho juntamente com um pequeno descanso que bem
precisava; visto que quando embarquei trazia fortes
dores de cabeça e mau estar, em virtude da falta de
descanso antes da partida.
02/02/1967 - Navio Uíge
Encontro-me já bastante melhor. A comida desde o
princípio está a ser óptima, com vinho e fruta em
abundância e sobretudo com o máximo de asseio e muita
cordialidade por parte dos tripulantes. Houve a primeira
formatura, para instruções acerca de qualquer acidente
no navio. Tomámos os dois primeiros comprimidos – que
vão ser semanais – contra o paludismo.
03/02/1967 - Navio Uíge
Nos dias anteriores, só se tem navegado em águas
bastante agitadas, o que fazia o navio dar enormes
balanços, apesar de eu vir instalado em camarotes,
enquanto os soldados vêm nos porões, em camas de
madeira, que mais parecem caixotes.
Sendo portanto neste dia a ocasião em que o navio dá
menos balanços, pois atravessamos mar calmo, como, ainda
não se tinha visto. Já se está também a sentir calor.
04-05/02/1967 - Navio Uíge
A vida aqui dentro torna-se bastante monótona!
Há imensas saudades de terra, pois além de água, só se
tem avistado alguns navios, assim como a enorme
quantidade de peixes-voadores, que passam a arrasar por
cima das nossas cabeças dum lado ao outro do navio. O
meu pensamento é chegar à Guiné, pois isto já me está a
enfadar.
Escrevi hoje uma carta dirigida a familiares e amigos, a
dar as despedidas, e saudá-los pela primeira vez.
Porém só a poderei enviar de Bissau.
Quando parti de casa, com a mochila às costas e uma mala
vermelha com as minhas coisas, deslocando-me a pé para o
comboio que me levaria a Lisboa, e ao passar o pinhal,
donde ainda avistava o meu lugar onde cresci, olhei para
trás e despedi-me do meu povoado, dizendo para comigo:
até breve!
Estas foram as despedidas possíveis, pois não tive
coragem de dizer absolutamente nada a ninguém antes de
partir. Quis sofrer sozinho: por não saber explicar o
que vinha fazer, para onde, e porquê?
Espero apagar a solidão, descrevendo o meu dia a dia,
enquanto Deus me der forças e saúde para tal.
06/02/1967 - Navio Uíge / Bissau
Poucas habitações, muitas árvores, dois cais marítimos;
foi o que avistei pelas dez horas. Era a capital da
Guiné! Seriam talvez três da madrugada quando navegámos
águas Guineenses…
Depois, um pequeno ilhéu, tendo ao centro um obelisco, e
finalmente, atracámos. Ficando ao meio do rio Geba,
tendo dum lado: a ilha do Rei; e do outro: Bissau.
Por volta, das quatro da tarde, abalou o navio “Alfredo
da Silva”, que já estava atracado quando chegámos.
Durante o dia fez muito calor. Agora perto da noite,
sente-se o tempo mais fresco, e com mostras, de
nevoeiro. São seis horas da tarde e parece que vamos cá
ficar esta noite. Tivemos o primeiro contacto com
nativos em terras Africanas, por ora, simples empregados
de barcos que transportam a carga do rio para fora; a
meu ver, pobres diabos “mal vestidos” que só nos pedem
coisas, entre elas – dinheiro de Lisboa.
Enviei duas cartas para casa, e comprei uns selos.
07/02/1967 - Fá
Levantámo-nos eram três da manhã e saímos finalmente de
Bissau – sem irmos lá – subindo rio Geba acima, pelas
seis horas, numa lancha L.D.G. (Lancha de Desembarque
Grande), sendo patrulhados por marinheiros. O pormenor
mais importante desta viagem, foi na altura em que os
homens da tripulação, destruíram uma canoa dos turras,
com seis tiros, obrigando toda a malta a deitar-se
instintivamente.
Desembarcámos em Bambadinca pelas treze horas, e daí
seguimos para Fá, onde iria ser o nosso primeiro
aquartelamento na Guiné.
Depois dum refrescante banho já depois de o sol se pôr,
numa fonte de água fresca próxima do quartel – e,
segundo dizem, a melhor da província – comemos a
primeira refeição cerca das dez horas da noite. Apesar
da fome que passámos, o nosso maior inimigo, neste
início, é o calor, pois vínhamos do frio e quase todos o
sentimos.
14/02/1967 - Fá
Será talvez doravante, que eu começarei a descrever algo
além dos limites, das leis ditadas por quem não sofre
estes martírios, obrigando-nos a admitir tudo que os
superiores – por serem superiores – pensam poder abusar.
Além disso, um soldado, tem sempre tudo e todos contra
ele, sem ninguém que o defenda. Infelizmente a guerra
que nós, os pobres soldados fomentamos, alastra-se cada
vez mais por isso; e se morrem alguns, é talvez mais por
se sentirem desorientados sem que tenham alguém por
eles. Castiga-se como se andássemos na recruta, ou pior
ainda, e demais, castigos severos. Não é disciplina, é
abuso, daqueles que por inferiores nada podem recusar!…
16/02/1967 - Fá
Vieram finalmente notícias! Duas epístolas dos
familiares, e um jornal: constituiu para mim exuberante
alegria e de momento comovi-me; pois já tinha os meus
mais perto de mim. Por vezes a falta de notícias, para
nós mesmos não nos traz tormentos nem saudades, é como
que embriagados pelas circunstâncias a que estamos a ser
submetidos. Parece-nos ou, quer-nos parecer, que não
temos ninguém além de nós; isto é só para aqueles que,
ou mais mentalizados, ou ainda sabendo não ter outro
remédio senão conformar-se, desfrutando dum ambiente,
que não lhes é, nem nunca foi próprio. Mas há os que
mais fracos de espírito – e não conseguindo passar o
exame, a que a comunidade nos conduziu – vivem hora após
hora, pensando, trazendo à memória com palavras de
saudade e compaixão, a recordação dos seus. São esses
então que nos refrescam a memória e nos obrigam a
lembrar aquilo que a todo o transe tentamos esquecer.
17/02/1967 - Fá
Estava a jantar. Eram quase sete da tarde. Houve
correio: um grande maço de correspondência. Acabei o
jantar à pressa, e fui ouvir a leitura dos endereços a
quem se destinavam.
Neste dia obtive resposta ao correio enviado, deste
interior da Guiné. Natural alegria, melhor moral,
portanto!
Fiz hoje a minha primeira saída, com o meu grupo de
combate – o segundo doravante pois esta Cart.ª foi
dividida em quatro grupos – para uma patrulha de
reconhecimento, e adaptação do interior do mato, da
Guiné, a que iremos estar sujeitos, durante a nossa
missão.
Apreciei pela primeira vez, uma grande plantação de
bananeiras.
18/02/1967 - Fá
Chegaram-me hoje notícias regionais, em dois jornais da
minha terra. É sempre com grande prazer, que se lêem os
mais diversos apontamentos da vida e usos, daqueles que
conhecemos, e é como se durante a leitura, estivéssemos
mais perto da nossa terra!
São momentos de completo esquecimento da guerra, e são
ao mesmo tempo, essas letras que evitam a fuga da nossa
recordação, da imagem dos queridos e bons amigos, que
nos aconselham calma, palavras cheias de moralidade!
…Fica aqui o meu agradecimento, a todos quantos me
ajudam, quase sem darem conta.
19/02/1967 - Xime
Domingo; o segundo na Guiné. Um dia diferente dos
outros. Não tanto por ser o dia do Senhor – mas sim; um
para recordar.
Levantámo-nos às cinco da manhã, e saímos uma hora
depois preparados para a guerra, sem sabermos para onde,
como, e para quê: são as incógnitas desta vida…
Acompanhados por outra companhia e com viaturas fomos de
Fá até Bambadinca, e de lá até Amedalai, abalando depois
em direcção ao Xime. Aí almoçámos e passámos a noite.
20/02/1967 - Xime
De madrugada, entre as três e as cinco horas houve
“ronco” lá para o Norte do Geba – aqui é a parte Sul –
numa densa mata de nome Sará. Não estando habituado a
este género de “festa”, levantei-me e vim apreciar cá
fora o espectáculo, ficando um pouco sobressaltado.
Depois do pequeno-almoço, saímos para montar segurança a
um pelotão que ia para um destacamento.
O percurso é péssimo e perigoso. Costuma ser muitas
vezes armadilhado com minas pelo inimigo, mesmo perto do
quartel, contando-se já vários mortos e viaturas
destruídas. O chão é picado cuidadosamente em todo o
percurso e todos os dias.
Estou sentado num monte de “baga baga” ou termiteira,
construção de terra habitada pelas formigas térmites, –
insectos que atingem cerca de vinte milímetros de
comprimento, com boca de turquês com a qual removem e
elevam o solo a alguns metros chegando a mais de três
metros e meio de altura. São germinados por um só – a
rainha – de pele flexível, que atinge o comprimento de
vinte centímetros, por três de espessura, e que vive
debaixo deste monte ao centro, onde tem um espaço de
terra limpo. O comer é-lhe trazido pelas obreiras, pois
não se move, visto o corpo, ser muito maior do que as
pernas.
De onde estou emboscado, avisto três camaradas meus. São
talvez dez horas da manhã.
Existe aqui “manga de” palmeiras (grande quantidade) e
denso arvoredo dos lados, onde se avistam muitos
macacos-cães, saltando de árvore em árvore, fazendo
latidos. Ouve-se o cantar duma grande variedade de aves.
Pela tarde, fui novamente montar segurança, a viaturas
vindas de Bambadinca. Fazia bastante calor, e o peso do
almoço, fez-me transpirar imenso. Assim que parei,
descalcei-me para os pés estarem à vontade e
refrescarem, embora os mosquitos não deixassem de mos
picar; visto eles aqui serem aos milhares!
21/02/1967 - Xime
Neste quartel de Xime, onde temos permanecido desde a
saída de Fá, está-se em contacto permanente com os
indígenas, que vivem à entrada numa tabanca, com enorme
população, sendo alguns deles soldados dum pelotão de
nativos. Já percorri a mesma, e tive o primeiro contacto
com as “bajudas” (raparigas adolescentes nativas) -, em
companhia de camaradas mais velhos, que pertencem à
Companhia de Caçadores nr. 1550, cá destacada – e
comecei a papear o crioulo. Como curiosidade tive nos
braços, um garoto mulato, talvez fruto da passagem, dos
primeiros militares brancos, por cá, no início da
guerra.
Conheci cá um rapaz dos Pousos – Leiria, o qual me
acomodou, com cama e roupa, e se fez meu grande
“amigalhaço” ou amigão, (que em linguagem de caserna,
quer dizer: grande amigo). Não obstante, a minha terra
ser longe da dele, e se calhar nunca mais nos tornarmos
a encontrar isto cá na guerra é assim: muitos
quilómetros na nossa terra-mãe, onde se nos
encontrássemos não nos daríamos conta, torna-se em
mesquinhos metros nesta terra de dificuldade!
De tarde, mais uma saída de reconhecimento, durante hora
e meia.
Enviei duas epístolas (aerogramas) para casa, dando
notícias minhas, servindo somente para dizer presente!
Levaram a direcção de Fá, pois a eles não interessa
saberem onde estou; mas sim como…
24/02/1967 - Enxalé
Estou à beira do rio Geba. A maré está muito baixa, e só
a poderemos atravessar daqui por três horas.
Saímos logo de manhã do Xime, onde estivemos até hoje,
indo em seguida para Enxalé.
No Xime, a população constituída por diversas raças,
fica à beira deste rio, que é a base da sua alimentação.
Quando chegámos os nativos já partiam com grandes molhes
de peixes enfiados em varas. Como a maré está baixa,
vê-se nas margens lodosas uma enorme multidão de
espécies de caranguejos “cacres” – designação dada pelos
indígenas a uma espécie de crustáceos – com uma só perna
superior, e que também fazem parte da sua alimentação,
sendo misturados com a “bianda” ou comida. (Para nós
militares, este termo – bianda – estava relacionado com
o arroz, que era a base da alimentação da população
nativa).
Depois de passarmos o rio numa lancha da Marinha, L.D.M.
(Lancha de Desembarque Média), chegámos a Enxalé,
prosseguindo através duma bolanha, (grande extensão de
terreno plano, onde abunda o capim) durante meia hora.
Mais um quartel, em parte composto por militares, da
nossa ilha da Madeira, e mais uma aldeia indígena.
25/02/1967 - Enxalé
Fiz a mais dura viagem em viaturas do nosso Exército,
numa estrada com quase trinta quilómetros, cheia de
buracos originados pelas chuvas, (e talvez minas?) que
nesta época estão secos, chegando alguns a ter perto de
um metro de fundo. Fomos de Enxalé até Porto Gole,
ficando eu emboscado com a minha secção, uns quilómetros
antes.
Fomos buscar homens vindo de uma operação, que tinha
começado oito dias antes, nas matas do Sará, e onde
estiveram com mais companhias, batendo a zona, que é
povoada de forte terrorismo.
Parece não ter havido baixas da nossa parte.
Foi capturado, um importante hospital militar, no meio
da mata, composto do mais moderno equipamento, e duma
variedade extraordinária de medicamentos.
26/02/1967 - Enxalé
Ao sairmos de Fá, ninguém nos informou, quais eram as
dificuldades que vínhamos cá encontrar, absolutamente
nada! E, deste modo, aqui andamos desprezados, pois uma
vez cá, os nossos superiores tratam de se safar, não
ligando aos nossos suplícios: Foi preciso reunirmos
todos, e quase haver zanga, para nos arranjarem uma
manta, onde nos pudéssemos enrolar durante a noite.
Claro que o resto já é nosso conhecido há dias: o
bastante incómodo chão!
Como se tudo isto não fosse o suficiente, há ainda a
miscelânea de insectos que nos dificultam o nosso
bem-estar, dado que o nosso corpo ainda não se encontra
adaptado às circunstâncias. Isto é, aclimado. “Ele”,
depois destes carinhos, começa a mostrar o trabalho da
bicharada a que estamos expostos. Para mim, o meu já
meteria nojo, visto fora deste ambiente: cheio de
vermelhões, desde a testa, onde se vêem pequenos altos,
até à parte debaixo dos pés, obrigando-nos a constante
coçar, deixando por vezes a pele cheia de sangue.
04/03/1967 - Enxalé/Porto Gole
Neste sábado até às quatro da tarde, tudo foi normal.
Estava de “cabo de dia” e, não fazia conta de sair pró
mato; mas saí, e em direcção a Porto Gole, onde chegámos
às seis da tarde. Comemos uma mal confeccionada
refeição, de arroz com ervilhas e sardinhas de conserva,
regada com o já célebre vinho baptizado!
Como na tropa o lema é: desenrasque-se quem puder… Eu
para passar parte da noite, que teria de ser ao ar livre
e, sobre o chão, tal como andava – pois estava prevista
uma saída pela madrugada – então “orientei” da melhor
maneira, e o mais disfarçado possível, material para
descansar o corpo, que se resumiu: a um colchão, um
cabeçalho, uma manta, e um lençol. Tudo em pontos
diferentes, que depois lá ficaram, até os donos os
encontrarem. Assim pude passar melhor a noite,
juntamente com o meu camarada Alves, enfermeiro do meu
grupo de combate.
05/03/1967 - Porto Gole/Enxalé
Saímos a pé, por uma enorme bolanha, toda coberta de
capim com mais de dois metros de altura, pelas três e
meia da madrugada, com destino a Bissá, onde chegámos às
sete e meia, para fim quase exclusivamente da compra de
gado bovino. Instalámo-nos em redor das, tabancas, para
montar segurança ao capitão da Cart.ª nr. 1439, de
Enxalé, enquanto negociava com os nativos, visto os
mesmos, tanto nos venderem a nós, como aos nossos
inimigos.
Foram mais de cinco horas, de aldeia em aldeia, tendo o
máximo cuidado na operação, dos cercos, pois o inimigo é
familiar aos habitantes, chegando a passar as noites com
eles.
Em determinada “moransa”, (habitação comum) foi mesmo
capturado um, que tentava fugir, apesar da nossa
vigilância.
Depois desta operação regressámos a, Porto Gole, mas por
caminhos diferentes, para fugir às emboscadas, que o
inimigo costuma fazer nesta zona. Talvez devido à
mudança de itinerário não houve contacto. O calor era
intenso, e o percurso parecia não mais ter fim, que nos
obrigou a passar diversas bolanhas, até um rio, que além
da pouca água na altura, de uma margem à outra, um
autêntico lamaçal. Foi uma jornada bastante dura, e com
imenso desgaste de energias até à exaustão.
Demoraram três horas os nossos esforços, e finalmente
chegámos pelas quatro horas a Porto Gole.
Este dia foi terminar a Enxalé, onde jantámos e tomámos
banho, o que bem necessitávamos, após tão grande
sacrifício, com tão pouco tempo de Guiné.
Hoje pude avaliar, quão grandes, teriam sido as
dificuldades, que os nossos antecessores sofreram, e eu
ainda terei de sofrer (?). A água, que costuma ser
bebida com comprimidos e filtrada, bebeu-se por todos,
sofregamente sem olhar a limpeza e origem.
Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças
do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da
cor que fosse!
10/09/1967 - Bissá
Durante estas três noites, todo o pessoal aqui destacado
pouco tem dormido, pois espera-se outro ataque mais
forte, visto saberem que nós até este momento, ainda não
temos mortos nem feridos, e ainda que poderão tirar
proveito da nossa falta de iluminação, e falta de
munições – o que não seria admissível, num ponto
infestado de turras, como este! De tarde chegou um
helicóptero com material “bélico”. Servindo-nos deste,
enviámos o correio para Bissau.
11/09/1967 - Bissá
Com partida no dia dez de Mansôa, chegou cá, cerca das
onze horas, um grupo de homens encarregados de nos
trazer víveres, mas a pé e sem eles, – pois os víveres
ficaram a mais de cinco quilómetros – dado que as
viaturas que os transportavam não conseguiram avançar
mais, e depois de terem sofrido três emboscadas pelo
caminho, sendo a última no próprio local de paragem.
A nossa coluna que foi ao seu encontro, esteve até às
três horas do dia dez, à espera, regressando outra vez
ao aquartelamento. Entretanto eles chegavam lá pelas
cinco horas, sofrendo uma emboscada e atascando as
viaturas. Apesar das dificuldades, tiveram de passar lá
a noite, indo alguns a pé à frente e encontrando a nossa
coluna que tinha ido ao seu encontro de novo, logo de
manhã, neste dia. Seguiu para o local uma viatura nossa,
nessa coluna, que atascando aqui e ali, com grande
sacrifício lá os encontrou, depois de passar sob uma –
embora fraca – emboscada dos turras. Tinha chovido toda
a noite anterior, e continuou durante este dia, até à
chegada já bastante noite, dos meus colegas, chegando-se
a pensar que também eles lá ficariam.
Eram pouco mais de vinte homens, e outros tantos estavam
cá dentro do destacamento.
Nessa mesma coluna veio um furriel sapador, de Maceira
Liz, de nome Miroto, e que eu conhecia – pois nasci lá –
embora só de relance.
16/09/1967 - Bissá
Às nove e tal da manhã dava-se o primeiro grande
“acidente” da companhia. Balanço: quatro mortos, sendo
dois brancos e dois pretos, e mais de treze feridos
graves; uma viatura em pedaços; e diversos materiais
estragados!… Uma viatura “pisava” a primeira mina: E
íamos fazer oito meses, que nós andávamos a pisar
estradas da Guiné!
A coluna feita para levar o furriel “meu vizinho” à
Metrópole, em férias – ou melhor, até Porto Gole, para
daí seguir para Bissau – trazia-nos géneros e
medicamentos. Indo tudo pelos ares.
Morreu o condutor de nome Castro, bastante meu amigo e o
comandante da coluna, e meu amigo também, furriel
Antunes, que conhecia a Marinha Grande, tendo já lá
trabalhado, pelo que me contou um dia. Era casado e
natural de Portalegre. Sendo os últimos dois, nativos
cujos nomes eram: Mamadu Jamanca e Adular Sissé.
Estes três últimos mortos, pertenciam ao Pelotão de Caç.
Nat. Nr. 54, e no qual eu estava integrado até à minha
vinda para Bissá. Eram todos óptimos camaradas, por quem
era estimado, visto ter vivido quase cinco meses entre
eles.
De salientar, o espírito de sacrifício, com que andaram
os sete quilómetros que faltavam até cá, dois brancos e
dois pretos, que abalaram logo, mesmo debaixo de fogo,
dos turras emboscados, trazendo a notícia de tão grave
acontecimento, vindo um deles, o cabo nativo Ananias,
com uma perna aberta e os ossos à mostra e um pulso
partido, além dos outros também bastante amassados, pois
andaram pelos ares, e caíram de qualquer maneira,
ficando ainda alguns debaixo da viatura que se virou ao
contrário, ao lado do buraco, com mais de três metros de
diâmetro, originado pela explosão da mina.
01/06/1968 - Porto Gole
O meu sono e o dos meus camaradas foi perturbado à uma
da madrugada! E passadas duas horas, saímos juntamente
com a companhia presentemente cá destacada, para fins
operacionais.
O nosso destino, era uma ligeira patrulha nas matas de
Seé, a pouco mais de 10 Kms de percurso. O andamento foi
decorrendo normal e sem incidentes até cerca das seis da
manhã: altura em que detectámos algumas folhas juntas a
uma árvore – a sentinela avançada do inimigo, que tinha
ido dar o alarme.
A seguir era a entrada, numa bolanha rodeada de espessa
mata, feita em corrida: tínhamos detectado tropas
inimigas – que no momento em que eu chegava à zona de
morte (vista depois) – faziam a entrada numa mata do
nosso lado esquerdo; esses mesmos acabavam de fazer uma
patrulha, ou então deveriam vir dum suspeito
acampamento, perto da nossa viatura, imobilizada na
emboscada de 10 de Abril (?). Fiz logo fogo, assim como
toda a frente do meu grupo; sendo nessa ocasião feridos
alguns inimigos… o resto desses, fez entrada apressada
na mata.
Entretanto, nós avançávamos pela mata dentro; mas a
escassos metros o inimigo esperava-nos!
Então o tiroteio foi intenso, com o inimigo a
cercar-nos. Tivemos de retroceder: mas uma vez fora da
mata, os tiros e rebentamentos, sucediam-se de todos os
lados; eram feridos cinco elementos nossos, entre eles o
capitão da outra companhia.
Depois avançámos ao longo da mata, com as forças
inimigas bem instaladas, e a fazer fogo constante sobre
nós. Num momento de maior aflição era deixado o capitão
e alguns homens nessa dita zona de morte. Eu, nesse
momento, estava no meio da bolanha oferecendo um alvo
fácil, ouvindo assobiar rajadas e roketadas, e via os
meus companheiros a passarem por mim; pois tinha sido
dos primeiros, e só fiquei para trás, na altura em que
reparei que todos “fugiam” em direcção a Bissá, sem se
importarem com a rectaguarda. Gritei!… Pedi que
recuassem!… E vi os turras correrem para os que estavam
em perigo. (Depois – disse um soldado de nome Pombinho,
de quem eu trazia a arma – “os turras avançaram,
mandando-lhe levantar as mãos e ordenando que se
rendesse”): A resposta dele; foi uma rajada com uma arma
de um ferido, obrigando-os a fugir para o mato.
O tiroteio continuava com as nossas forças dispersas
pelo mato, havendo dois grupos de combate, que tinham
ido dar uma volta ainda maior, e reagrupando aqueles que
ainda estavam na zona de fogo.
À frente tudo corria, para Bissá. Atrás, ficavam duas
armas: uma pesada “Mgê” e uma ligeira Gê.3; e o pior de
tudo, um homem da outra companhia, era apanhado à mão
pelo inimigo! (Mais tarde falou-nos de Conakry, via
rádio – a informar-nos que se encontrava bem).
Enquanto a maior parte chegava a Bissá, com dois feridos
graves a perderem sangue, entre outros, apareciam no
local de combate, dois bombardeiros, dando em seguida
algumas rajadas para a mata, onde nessa altura se
encontravam já, os grupos de combate, que tinham vindo
em socorro, orientando-se pelo tiroteio. Seguidamente
aterrava um helicóptero protegido pelos bombardeiros,
para evacuar o capitão e mais dois homens também feridos
por uma roketada, enquanto lhe faziam segurança.
Partimos de Bissá às duas da tarde; mas só os que podiam
andar – lá seriam evacuados quatro homens feridos e dois
exaustos – pois ainda lá ficaram três ou quatro que não
podiam caminhar. Eu, apesar de ter poucas esperanças em
aguentar essas três horas de andamento, abalei disposto
a cobri-las, pois trazia no pensamento unicamente o nome
de Porto Gole! Fomos encontrar os bombardeiros, a meio
do percurso, não tendo mais chatices com o inimigo.
Cansado e sem forças, fui o primeiro a chegar a Porto
Gole…
02/06/1968 - Porto Gole
Hoje esteve cá, Sua Ex.ª o Sr. Brigadeiro Spínola.
Governador e Comandante – Chefe das Forças Armadas; que
se encontra nestas terras, há pouco mais de uma semana;
Permaneceu algumas horas em reunião confidencial, com os
nossos comandos, falando-nos em seguida acerca do
incidente e da causa da sua vinda a este. Fez-se
transportar em duas avionetas.
Regressaram a Mansôa, também todos os elementos da
companhia 2315, que actuaram em conjunto com as nossas
forças, aproveitando a vinda cá, dum batalhão que
transportou géneros da Manutenção Militar de Bissau para
cá.
03/06/1968 - Porto Gole
Três dias passados após a fatídica “patrulha”, o meu
corpo anda todo partido, e dificilmente me sai da
cabeça, o espectáculo daquele infernal tiroteio.
Acrescento que foi gravemente ferido, o outro cabo da
minha secção – o Arnaldo – sendo um dos evacuados.
10/11/1968 - Quartel dos Adidos em Bissau
A anarquia é total! E extensiva aos nossos superiores.
Impossível confusão tão completa. Sobretudo à noite,
quando os nossos corpos necessitam de descanso: há
corpos deitados de qualquer maneira; uns em cima de
simples ferros; outros em camas sem leito e colchão, no
chão; e os mais afortunados foram roubar camas completas
a outras casernas.
Caixas, malas, e sacos, não faltam pelo chão, espalhados
de qualquer modo… Gritos de desespero e desolação é a
imagem destas noites inteiras: mas não vale a pena
conspirar; estes dias terão de ser passados assim até
chegar o Uíge.
Tudo isto e muito mais, que se me torna impossível
registar, é passado numa “caserna” (arrecadação) do
Depósito Geral de Adidos em Bissau, onde se encontra
toda a Companhia, desde o dia oito deste mês. Finalmente
fora do mato!
19/11/1968 - Navio Uíge
Ontem, pelas quatro da tarde, foi o meu embarque na
Ponte do cais de Bissau, para bordo dum batelão que
depois me levou ao Uíge; navio que neste momento segue
“caminho” de Lisboa.
Desde muito cedo, que comecei a sentir os efeitos dos
balanços do navio, que cada dia mais, terão tendência.
Em aumentar. São quase seis da tarde, e estou deitado na
cama no meu camarote. (A malta da minha companhia vem
toda em camarotes, ao contrário da ida, em que só os
oficiais sargentos e cabos, tiveram esse privilégio).
Passaram mais umas horas; pois fui obrigado a ir “deitar
carga ao mar” por duas vezes.
Seguidamente jantei e fui ao cinema, e depois de dormir
umas horas, encontro-me mais bem disposto.
Os relógios atrasaram 60 minutos.
São nove horas da manhã, na minha cabeça ainda se faz
sentir um certo “peso”, talvez causado peta mudança de
clima; o que sempre me aconteceu mesmo quando mudava de
zona. Vou tentar descrever a parte final deste meus
quase 22 meses, que se resumiram em pequenos
apontamentos daquilo que se passou em meu redor:
No sentido de camaradagem, o meu ponto de vista, é
excelente (comigo claro), muito embora, eu não tivesse
sido bem compreendido, no desempenho das funções que me
confiaram – responsável pelo depósito de géneros, na
maior parte do tempo – pois entendiam que a minha
maneira de ser, era rude; porém eu simplesmente cumpria
o meu dever, gerindo muitas vezes, o que era ingerível…
A nível de chefias – nem tudo foi cor-de-rosa – fiz
óptimas amizades; entre outras, menos dignas desse nome.
(A carapuça só serve a quem ela couber) Testemunhei
algumas injustiças, que já vinham viciadas da Metrópole.
Até os nossos vencimentos, estiveram sempre incompletos,
sem sabermos a causa. Para no fim, sermos contemplados
com pouco mais de uma centena de escudos, excepto,
oficiais e sargentos.
Foi oferecido um guião a todos, mas eu fui um dos
esquecidos, pois não mandaram fazer os suficientes.
Porque gostava de ter um guião, fui à secretaria e ao
pôr os olhos num, acabei por roubá-lo…
Agora que o pior passou, a alegria não tem limites, e o
meu maior prazer, foi finalmente poder dar com os dois
pés nesta vida, a que estive obrigatoriamente submetido.
Haveria muito mais que descrever nesta vida, onde, por
diversas vezes, fui obrigado a ir mais tarde para o
reforço, e sacrificar o meu colega de serviço, para
poder acabar os meus registos diários. No mato, enquanto
fazia emboscadas ou patrulhas, os apontamentos do meu
livrinho, que trazia sempre comigo no dólmã, saíram
algumas vezes incompletos e com falta de acção e estilo
– a minha escassa formação primária não me proporcionou
melhores ideias – e tudo o que ficou escrito, não se
tratou senão de simples partes vividas, onde a realidade
dava lugar a maiores esclarecimentos. E, acabei por
impor a mim próprio, a chamada “memória selectiva”, e
omitir factos tão ruins, que eu nem os conseguia
descrever, e com a sua omissão, convencer-me de que
nunca aconteceram.
20/11/1968 (10 horas e 10 minutos) - Navio Uíge
A minha missão não foi das mais árduas; outros houve que
sofreram muito mais. Para esses, irá decerto o carinho
de todos quantos nos rodearam através das escassas
notícias referidas além-mar.
Nada paga tão imensa alegria, de podermos regressar ao
lar, e esquecermos, tantas e tantas horas, que passámos
sem dormir, atentos ao inimigo, e depois de o termos
aguentado, acarinharmos os nossos camaradas feridos, ou
chorarmos os mortos. A estes últimos: os heróis
desconhecidos desta guerra, aqueles que mais ninguém
recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos,
a estes, a minha modesta homenagem que se resume a
desejar-lhes Eterno Descanso. Irmãos de meses difíceis
desta tropa, a minha lembrança por vocês, perdurará em
mim eternamente, pois eu podia ter sido um de vós!…
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