Capítulo III
Dia 22 de Junho de 1964. Depois de termos
sido rendidos por outros militares que vieram de uma
zona de guerra, pelas 15 h., rumaram à sede da Companhia
no Cacuso, onde chegaram por volta das 18 h. Seguiu-se a
deslocação da Companhia para a estação e de seguida o
embarque no comboio especial com destino a Luanda,
Grafanil, onde chegámos no dia 23, pelas 7 h., sendo
concedida dispensa para os que não estavam de serviço, a
fim de visitarem alguém de família ou irem até à cidade,
fazendo tempo para que fosse organizada a coluna de
veículos civis.
Pelas 24 h., já em veículos militares,
começamos a ser intercalados entre veículos civis,
chamado o M. V. L. (Movimento de Viaturas de Logística).
Carregados os veículos, verificado todo o armamento e as
munições, eis-nos a caminho de Nambuangongo às 2,40 h.
da madrugada do dia 24 de Junho, "dia de São João", com
destino à nova sede da Z. I. N. (Zona de Intervenção
Norte), para rendermos o Batalhão de Caçadores 460, que
se retirava para a Zona Sul, onde ia repousar dos
sacrifícios passados, tendo ficado a C. Cav. 624 na
Fazenda Beira Baixa, seguindo a C. C. S. e 625 para a
sede em Narnbuangongo e a 626 continuou a viagem para
Quixico.
Na noite de S. João, partimos para
Nmnbuangongo.
Que viagem de folia!
Sempre com os olhos arregalados,
A ver quando o inimigo surgia!
À hora da partida sentíamo-nos cansados,
mas sono era coisa que não havia, à nossa frente
apresentava-se um longo caminho, com os morros de
Quicabo, Balacende, Beira Baixa e ainda o morro da
vingança, onde tantos dos nossos militares já haviam
tombado ao serviço da Pátria.
Iniciámos a viagem com dezenas de camiões
civis fretados que levavam o apoio logístico para todas
as forças que se encontravam estacionadas no percurso. A
primeira paragem foi no aquartelamento de Quicabo, pelas
8 h., onde ficaram alguns camiões civis que
transportavam mantimentos e equipamentos. Aqui, era o
início da zona de guerra, chamando-se mesmo as portas da
guerra. Depois de troca de informações entre os
comandantes das unidades quer da estacionada quer da
nossa, continuamos a viagem para a Beira Baixa, aqui, já
com escolta da unidade estacionada em Quicabo, com os
militares a colocarem-se nos pontos mais perigosos, até
próximo de Balacende, onde estava uma outra unidade que
nos fez protecção no mesmo modo até às imediações de
Beira Baixa onde ia ficar a C. Cav. 624, para render a
C. Caç. 459.
Logo a seguir a Quicabo, no local onde
existem uns morros e umas matas serradas, ouvimos as
primeiras rajadas de metralhadoras, que nos obrigaram a
saltar dos veículos e tomarmos as nossas posições de
defesa e ataque, mas logo chegou a comunicação que
haviam sido as nossas forças que seguiam na frente da
coluna, para um reconhecimento não fosse o inimigo
estar ali preparado para uma emboscada, o
que não aconteceu.
Chegados à Beira Baixa uma pequena
paragem de todo o M. V. L., na picada principal, ou
estrada principal, como se lhe queira chamar, para a
saída da Companhia 624 e para nova mexida na escolta
afim de intercalar os veículos civis para ficarem mais
protegidos, já que se aproximava o referido morro da
vingança, e após tudo em ordem continuámos a nossa
viagem sempre de olhos bem abertos, até que depois de
termos passado pelo perigoso morro da vingança e pela
fazenda denominada Onzo, lá chegámos a Nambuangongo.
Durante
a viagem atravessámos impressionantes vales, ladeados
por enormes montes, uns com matas impenetráveis e outros
com matas que haviam sido limpas e no seu interior havia
enormes plantações de cafeeiros, carregados de bagas de
café, que ninguém apanhava por os seus donos terem sido
mortos no inicio da guerra, em 1961.
Ainda na viagem, ao vermos tal paisagem,
todos nos interrogávamos sobre os perigos que iriamos
enfrentar, ao termos de percorrer parte daquelas
misteriosas matas.
Quando chegámos o calor sufocava. Os
nossos corpos transpiravam abundantemente e com a poeira
que havíamos apanhado durante a viagem, parecia que
tínhamos cimento agarrado ao corpo.
As forças aquarteladas foram-nos
informando onde se situavam os diversos locais para as
necessidades, incluindo os balneários onde poderíamos
tomar banho, e verificamos que estes serviços eram uns
bidões dependurados por uma corda com um tubo de
borracha no fundo, com uma torneira e um crivo de
regador na ponta, situados num descampado, com umas
tábuas à volta com frestas largas, talvez para se
tomarem mais frescas.
Assim que nos foi possível, começamos
logo a ir tomar o nosso famigerado banho e a
refrescarmo-nos, mas pouco tempo depois os que estavam
no banho tiveram a pouca sorte de se lhe acabar a água e
tiveram de limpar o sabão que tinham no corpo às
toalhas. Juntamente com os restantes tiveram de aguardar
pelo dia seguinte até ao abastecimento, que só ocorreu
muito próximo ao meio-dia, para podermos tirar a
quantidade de pó que tínhamos em cima do nosso corpo.
Na viagem, ao vermos tal paisagem, todos
nos interrogávamos sobre os perigos que iríamos
enfrentar, ao termos de percorrer parte daquelas
misteriosas matas.
Uma vez chegados, a C. Cav. 626, após uma
pequena paragem para os militares se refrescarem e
aliviarem as suas pernas, seguiu para o Quixico, a fim
de render a C. Caç. 458, local onde chegou ao anoitecer,
com todos os elementos a parecerem mascarados e não
seres humanos, dada a quantidade de pó misturado com
suor devido à alta temperatura que se fazia sentir.
Logo que chegámos, tivemos conhecimento
de que os militares que haviam ido fazer a protecção nos
locais mais perigosos para o nosso Batalhão passar,
haviam sido atacados logo na madrugada por um grupo
inimigo, que já estava à nossa espera e foi detectado
antecipadamente.
Apos começarmos a dialogar com os mais
velhos, soubemos que o nome desta localidade havia sido
mudado para Vila General Freire, mas continuava a ser
conhecida pelo nome indígena primitivo.
Nambuangongo era uma fortaleza toda
cercada por arame farpado e com duas fiadas, e ainda
protegida por minas anti-pessoal em toda a sua volta, e
uma fiada de rede electrificada a alta tensão que se
situava entre as duas fiadas de arame farpado, e seria
ligada em caso de emergência, mas nunca foi necessário.
Este quartel ocupava uma érea superior a
seis hectares.
As camaratas haviam sido construídas em
madeira pelas unidades militares que por ali haviam
passado anteriormente.
A vila, grande centro de transação de
café, antes da guerra, tinha uma igreja que fora
incendiada pelos revoltosos em 1961. Uma vez retomada a
povoação pelo nosso exército, a igreja foi reconstruida,
tendo-se encontrado dentro dela a imagem quase intacta
de Nossa Senhora de Fátima. Nesta igreja, o capelão do
Batalhão celebrava os actos litúrgicos, nomeadamente a
missa dominical.
Também encontrámos uma pequena pista de
terra batida para a aterragem de pequenas aeronaves, que
nos davam apoio, levando até nós o tão desejado correio
e faziam a ligação a Luanda.
Uma vez no local, iniciou-se o período de
sobreposição com a C. Caç. 460, unidade que fomos
render. Isto durou pouco tempo, uma vez que eles tinham
de ir ocupar outra zona e estavam ansiosos por voltarem
costas a Nambuangongo e a tudo o que o rodeava, ficando
apenas uma Companhia de Cavalaria independente, a 453,
que nos deu algumas indicações sobre a forma de actuação
do inimigo, como este lançava os seus ataques, e a
maneira de progredirmos na mata, indicações estas que
nos foram úteis e deram grande ajuda na nossa defesa.
A
partir desta data, ficámos entregues a nós próprios,
alojados nas camaratas pequenas e de madeira, com
telhados de zinco que as tornava ainda mais quentes,
pois estávamos trinta e três elementos em cada camarata,
em beliches militares de três camas e intervalos que
apenas cabíamos um de cada vez.
Ao seu redor, a grande paisagem era
esplêndida, com o verde-escuro das mates, misturado por
clareiras amareladas do capim e clareiras de terra
vermelha, a fazerem emergir uma beleza única.
Do quartel avistavam-se a Mata do Café,
Morro das Pedras, Morro do Catalabanza, grande parte da
picada de Zala e ainda o morro da Palmeira a caminho de
Quixico, locais sanguinários para as nossas forças e
ainda a Fazenda Onzo a caminho da Beira Baixa, local que
distava cerca de 11 km do quartel e onde nos íamos
abastecer de água ao rio com o mesmo nome, para todos os
serviços do quartel incluindo bebermos. Os militares que
andavam neste serviço caso não fossem atacados eram os
mais felizes, pois aproveitavam para se lavarem
convenientemente e refrescarem-se o que era praticamente
impossível no quartel.
A vida nesta localidade não era nada
fácil.
Alguns dos alimentos, como por exemplo
hortaliças, carnes, e peixe chegavam três vezes por
semana, para abastecimento de todas as forças do
Batalhão e ainda as unidades da região, que se
abasteciam na sede. Os caixotes de madeira, onde estes
produtos vinham acondicionados, eram lançados de avião
Nord-Atlas, em pára-quedas, para amortecer a pancada no
contacto com o solo, mas alguns destes alimentos como
ficavam espalhados pela mata e muito distanciados, ainda
levávamos algum tempo a encontrá-los, e quando
chegávamos já o inimigo tinha roubado os alimentos e
deixado os pára-quedas.
A cozinha e refeitório das praças
situava-se num barracão de madeira, coberto com chapas
de zinco suportadas por quatro vigas uma em cada canto,
para permitir a saída mais rápido em caso de emergência,
e ainda para facilitar a circulação de ar, já que a
confecção das refeições era feita com lenha e juntando o
calor do lume com o do sol tórrido era praticamente
insuportável.
Lembro-me de ver os cozinheiros na
confecção das refeições em calções e tronco nu, lavados
em suor com este a escorrer-lhes por todo o corpo.
A hora das refeições, no período da
sobreposição com as forças que iam ser rendidas, era ver
todos os militares a dirigirem-se para o refeitório uns
com pratos e outros com marmitas numa mão e talher e
copo na outra para receberem a comida e irem sentar-se
no chão onde o podiam fazer, já que o pessoal era muito.