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 TRABALHOS, TEXTOS SOBRE OPERAÇÕES MILITARES ou LIVROS

 

António Cadete Leite

ANTÓNIO CADETE LEITE (Porto 1934), licenciou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em 1961, e logo iniciou funções de assistente de anatomia. Em Setembro de 1962 foi colocado no Funchal como médico da Companhia de Caçadores 384 e, em Fevereiro de 1963, embarcou para Angola.

Após seis meses de permanência no Norte, em Quipedro, foi transferido para o Hospital Militar de Luanda. Exerceu funções docentes nos Estudos Gerais Universitários de Angola e, pós independência, de 1975 a 1983, regeu na Universidade de Angola as cadeiras de Anatomia e participou, através de múltiplos desempenhos profissionais e cívicos, na formação do Sindicato dos Médicos de Angola, na extensão da Faculdade de Medicina de Luanda ao Huambo, na criação da Associação 25 de Abril.

De novo no Porto, retomou funções na Faculdade de Medicina: doutorado em 1989, provas de agregação em 1995, jubilou-se em 2004. É autor ou co-autor de 54 trabalhos científicos, 47 dos quais publicados em revistas internacionais indexadas. Foi presidente da delegação no Porto da Associação da Amizade Portugal - Angola e membro do Corpo Editorial da revista Cassendo. Integra a direcção da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto.

“Como Vivi a Guerra em Quipedro, Angola no ano de 1963”

Texto da autoria de Augusto Baptista

Fonte: http://homensdeletras.blogspot.com/2009/10/como-vivi-guerra-em-quipedro.html 

Desafiado para a missão de apresentar “Como Vivi a Guerra em Quipedro, Angola no ano de 1963”, livro de António Cadete Leite, eu, avesso a exposições e por achar que outros, traquejados, sabedores, desempenhariam esta incumbência com mais acerto, eu, vencido e honrado pela insistência do autor aqui me querer, aqui me têm.

Aqui me têm para dizer que há homens que atraem histórias. Outros há por quem os dias passam, iguais, sem deixar rasto.

António Cadete Leite tem uma vida plena de histórias, eu sei. Conhecemo-nos há mais de trinta anos e ao longo deste tempo pude testemunhar o seu jeito predador de narrativas. Frequentemente insólitas.

Em Angola, nos primeiros anos de independência, tempo de lúcida exaltação e tempo também de alguma ingénua poesia, quando todos os homens eram camaradas, o camarada Presidente, o camarada juiz, o camarada padeiro, o camarada polícia, o camarada ladrão, o Cadete Leite, docente de Anatomia na Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, era o camarada doutor.

Pessoa conhecida e considerada em Luanda, esteve na fundação da Associação 25 de Abril, sede no centro da cidade, na rua 25 de Abril, mesmo defronte do comando da polícia. Uma tarde, o Cadete chega à Associação, estaciona a carrinha de caixa aberta emprestada pelo Cassiano Campos da Lito-Tipo, no exacto instante em que no quartel da polícia se arma sarrafusca, agentes a correr, metralhadora alçada, e a correr saltam para a carrinha recém-estacionada, e a correr vão todos, os polícias, as metralhadoras, a carrinha, Cadete ao volante, em perseguição dos camaradas gatunos.

Há homens que atraem histórias. Histórias que depois dão em livro, juntam gente, dentro e fora do livro, arriscando-nos todos a que, um dia, por artes literárias, os que se acham fora apareçam dentro de uma próxima narrativa do Cadete Leite. Nesta situação de fora e dentro da obra está a Ana Rosa, mulher e companheira de andanças, estão filhos, estão amigos do autor, estão companheiros d’armas. Nesta ambivalência estou eu, chamado que fui a exercícios fotográficos e ao desenho de capa.

Elegi como ícone da obra um par de botas. Com um par de botas, um valente par de botas, Salazar calçou a juventude, nos mandou para a guerra. Botas que integram cota grada do atavio castrense, se querem lustrosas na cidade, e no mato agasalhavam os pés do medo, medo que perpassa todo o livro.

Mas o livro consentiria outras sínteses icónicas, algumas de transparente mestria, se entre nós sobrevivesse o fulgor da mão do nosso amigo António Domingues a responder ao inevitável desafio de ilustrador da obra. Cheguei a pensar, e ensaiei, intrometer uma ratazana lá onde constam as botas. Uma ratazana a arder. A arder e a lembrar o holocausto dos roedores, círculos de fogo em Quipedro. Ou umas asas a preto e branco, asas de anjo negro, a prometer a redenção da insânia. Ou um quico, o quico do Oitinho, padeiro de Quipedro, o corpo em chaga, em chama, a oferecer o quico, o seu quico, ao Cadete Leite, na hora de ser evacuado para Luanda, o Hospital Militar de Luanda.

Ficaram as botas.

As sínteses são redutoras. Afinal o livro não integra só militares e guerra. Nele cabem paisanos, retratos que ganham corpo e força com a distância, tal qual o olhar do Daniel Faria que aqui nos testemunha.

E aí está o doutor Esmeraldo “no seu carrito modesto e antiquado”, situacionista, a perscrutar os hímens das donzelas e da sua desflorada Pátria. A indignar-se com o redondinho das mamas da estátua da Justiça na baixa madeirense “tão bem torneadas, esféricas e empinadas, como se elas fossem assim”. E hoje o podem ser, o são, como sabemos.

O doutor Ornelas, na sua festa chique, olhar pasmado nas pegadas de lama que o autor lhe pespegou na carpete. O psiquiatra Aníbal Faria, melómano, vestido à francesa, século XVII, cama “redonda, tão imensa que bem poderia acolher quatro ou cinco pessoas, (…) sob uma abóbada invertida repleta de lâmpadas de várias cores”, à mão direita “um quadro eléctrico com fusíveis e alavancas; do lado oposto, um gira-discos”; o doutor Aníbal, a ouvir Tchaikovsky. ”Logo no primeiro andamento começou a esboçar uma espécie de pequenas convulsões ao ritmo da música (…). Em cada um dos quatro andamentos alternou a cor da iluminação. Quando a audição terminou (…) estava banhado em suor”.

A boa senhora da pastelaria da Madeira que continua à espera de um ramo de flores, do Cadete e dos outros que lhe beberam o chá, os sumos, lhe paparam os bolos.

O capitão Sucena!

O capitão Sucena a entrar com a mulher na messe de oficiais de Santa Margarida, ele à paisana, ela luxuosa, jóias, cigarro longo, a apresentarem-se ao autor, a sentarem-se todos a um canto, ela a dominar a conversa “com o desembaraço de um atirador de arma automática”, enquanto ele, cabeça no ombro dela, se entretinha a “passar-lhe a mão pelas coxas, lançar-lhe olhares langorosos, balbuciar palavras em surdina”.

O capitão Sucena, comandante da companhia em Quipedro, entre ratos e mosquitos, homens a feder a suor, alterados e hostis, ele envolto no seu robe de seda púrpura, brasão dos Sucena bordado ao peito, perfumado, a fumar Marlboro, a perorar, distante.

O reitor Navarro, salazarista, o das cuecas de delicada lingerie, transido, a visitar Quipedro no seu fato azul-marinho, camisa de seda branca, sapato de verniz, a proporcionar a salvação: Luanda, Estudos Gerais Universitários de Angola, família, casa, ar condicionado, quilómetros de papel higiénico.

Memórias. Perecíveis memórias que o livro resgata. Impressivo testemunho, documento incontornável sobre a guerra colonial em Angola, nos alvores da luta de libertação. No desespero, na adversidade, no temor, no respeito pela tenacidade do gesto guerrilheiro, aos poucos despertaram consciências deste lado, se forjou uma vontade que eclodiu Abril. O livro, este livro, integra o acervo das obras necessárias para reflectir sobre um período decisivo da história dos povos que falam Português, de modo particular em Portugal, em África. Com verdade, cruzando páginas de vocação documental, um dia-a-dia rés à insânia, à depressão, com relatos impressivos de meticuloso recorte criativo.
Perdura o medo. Medo que se aloja no corpo e nem o tempo apaga, medo de tudo, de todos dono. Perduram os horrores da guerra: minas, emboscadas, bombardeios, napalm, “as lavras incendiadas, homens, mulheres e crianças atingidos ou a fugir em todas as direcções”. E de novo os aviões, o martírio, homens, mulheres, crianças. E de novo.

Perdura o grito do soldado Fernandes engolido pelo buraco da ponte, pela noite, pela trovoada, a chuva, o rio, pelo silêncio das lágrimas. E o tempo a passar devagar. O tempo parado. O sobressalto, a fome, a sopa de capim, os cigarros de capim, a paisagem de capim, o desespero de capim, a falta de tabaco, homens a bater com a cabeça nas paredes, a guerra das cervejas, Cuca, Nocal, a bebedeira, metralha, altercações, intriga, o corpo franzino da prisioneira Graça, fotografada entre sorrisos, depois espancada, entregue à Pide, no mato a bala do mata-alferes, exacta, sobre a fronte.

Perdura o estampido dos tiros sobre a mata hostil, para lhe vazar olhos, lhe matar o hálito, silenciar a voz. Perdura a eternidade de 5 meses de mato. Perdura o adeus do autor: “Entrei no Dornier, partimos. O piloto deu meia volta, sobrevoou a pista a baixa altitude, a malta acenava em despedida. Sobrevoámos depois o aquartelamento. Pela última vez lancei um olhar sobre Quipedro.”

Não foi o último olhar, sabemos. Outros sobrevoos a terra consentiu, Quipedro impôs. Doloridamente. Com meticulosidade e mestria, como quem descarna um osso, disseca o coração. Escreve um livro. Este livro.

Este livro sobre Quipedro, de onde ainda nos acenam os mortos. Nos acena Alcino Jardim (1), soldado 398 da 384, no seu ataúde, o diz Cadete, “ataúde construído com tábuas de uma das mesas de refeitório e caixotes de embalagens de tabaco, amortalhado nos lençóis da sua cama”. Ao lado, a dizer quem ali jaz, uma garrafa rolhada, lacrada, selada com o sinete da família dos Sucena.

O livro, este livro, rico em ambientes e cenas fílmicas, aguarda que alguém o alcance, dê modelado cinematográfico à narrativa. Heróis e vilãos não faltam emboscados entre páginas. Figuras de ficção, enfim bem reais, o que as torna mais de ficção ainda, figuras prisioneiras todas de Quipedro. Quipedro: três casas em ruína, telheiros, uma capela, um cemitério, sucata, arame farpado à volta. Um livro. Um livro com ânsia de leitores. Este livro.

Augusto Baptista

Como Vivi A Guerra em Quipedro Angola no ano de 1963

Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto

2009

187 págs

€ 15,00

Fonte: http://livrariautopia.blogspot.com/2009/09/leite-antonio-cadete-como-vivi-guerra.html

 

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(1) - Não é Alcino Jardim, mas sim, Alcindo Correia Jardim, Soldado Atirador n.º 398/62, natural de São Lourenço, da freguesia de Fajã da Ovelha, concelho de Calheta (Madeira), mobilizado pelo Batalhão Independente de Infantaria n.º 19 para servir na RMA, integrado na Companhia de Caçadores 384 do Batalhão de Caçadores 443, tombou em combate no dia 12 de Setembro de 1963. Está sepultado em Quipedro (Angola) - campa 5-1.

 

Fonte: http://ultramar.terraweb.biz/03Mortos na Guerra do Ultramar/LetraC/MEC_057n.pdf

 

O seu nome está gravado na Lápide n.º 10 (ano de 1963), no Forte do Bom Sucesso, em Lisboa

 

Fonte: http://ultramar.terraweb.biz/MonumentoNacionalCombatentesUltramar_Lapides.htm

 

 

 

 

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