TRABALHOS, TEXTOS SOBRE
OPERAÇÕES MILITARES ou LIVROS
Informação e texto enviado por
LC123278
António do Carmo Reis
Companhia de
Cavalaria 2331, no Mussuco, em Fev68 - Mar70
(nasc. 1942)
"Diário
do Tempo de Guerra (1966-1970)"
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"Diário
do Tempo de Guerra (1966-1970)"
autor: António do Carmo Reis (nasc. 1942)
editor: Museu da
Guerra Colonial
tipogr: Papelmunde
1ªed. Vila Nova de Famalicão, 2002
195 págs (incluindo ilustrações)
23cm
preço: 14,97€
dep.legal: PT-177707/02
ISBN: 972-9152-82-9
Assunto: Memórias de um ex-alferes miliciano em Angola
1968-70
Sinopse e resumos:
– «O oficial narrador é capaz de olhar para a História e
para o quotidiano das tolices de passatempo, dos medos,
das interrogações íntimas, do absurdo, dos comes e
bebes, das rotinas militares, com a mesma estranha conta
de aproximação e de calma distante. Numa literatura
cheia de fugas sentimentais ou rebuscamentos fúteis,
este livro traz a sua lição. Nem tudo é fácil de tragar,
para quem foi educado numa retórica politicamente mais
correcta, mas tudo é pão-pão (não havia queijo). Hoje
seria um blogue de guerra. O militar dá testemunho de
uma Angola ainda com fortes laços com as hierarquias
antigas (e com uma arte tribal ainda viva, que, segundo
muitos coleccionadores especialistas internacionais, a
brutal guerra civil extinguiu para sempre). Só algumas
entradas, mais ou menos salteadas:
Catxinga, 7 de Março de 1968.
Veio aqui um pequeno pedir-me de comer. O pobre do miúdo
só tem ossos e pele encurrilhada. Vamos lá a ver se o
rapazito recupera, na companhia dos faxinas gordinhos e
roliços que sorriem com dentinhos de prata.
As chuvas encalham os unimogs na picada lamacenta, o
correio atrasa-se e o reabastecimento não chega. A malta
irrita-se mas aguenta. São já quinze dias de lerpa!
Parece que, em Abril, vamos ser beneficiados com a
carreira de um táxi aéreo.
Catxinga, 4 de Abril de 1968.
Os soldados preferem correio a comida.
Isto hoje foi o fim do mundo! Imagine-se que veio um
avião de Luremo e se esqueceu de trazer a
correspondência!
Logo que chegam as cartas, o furriel do dia forma o
pelotão para entregar notícias. São momentos de
ansiedade que se estampam no rosto dos soldados. Quem
recebe, fica satisfeito e extravasa contentamento. Quem
lerpa, fica triste e, por vezes, não resiste a um gesto
de desespero ou deixa escapar uma imprecação furtiva.
Catxinga, 28 de Abril de 1968.
O soba Muximo veio acusar um soldado da milícia de lhe
ter roubado a mulher que levou consigo para a Marimba,
do outro lado do Cuango. Queria que o raptor lhe pagasse
o alambamento, ou seja, o preço da mulher: 10 cabras e
1.200$00. Escrevi então ao meu camarada da zona para que
resolvesse esta maca.
Foi este soba que me ofereceu uma cara com coroa de rei.
Quando lhe inquiri o significado da escultura ele me
explicou que representava os antigos soberanos da tribo
anteriores à ocupação portuguesa.
Catxinga, 17 de Maio de 1968.
Nesta vida de guerra há o respeito pela hierarquia. Um
soldado bem penteado, barbeado e tímido é maçarico. Com
três meses de mato, sobe a ultramarino. Ao fim de seis
meses, já habituado à guerrilha, é ultramaroto. Com nove
meses de África, é promovido a ultramalandro. Terminado
um ano, maduro e desiludido, é um mestre pistoleiro, é
um velhinho.
Há três meses precisamente que batemos aqui com as
costas.
Catxinga, 23 de Maio de 1968.
Vesti a pele de justiceiro.
Um indígena ameaçou um soldado, de catana em punho.
Mandei que prendessem o prevaricador e, depois de reunir
os homens da sanzala e de lhes explicar o delito,
apliquei-lhe uma carga de porrada.
Catxinga, 30 de Maio de 1968.
Chegam ecos de Paris! É a contestação da Universidade
velha. É a revolta contra a ordem estabelecida. É o
sonho a voar com as asas da Liberdade.
Catxinga, 3 de Junho de 1968.
Encontrei-me com a rainha de Makengue, uma velha de
porte direito e fala serena. Traz ao pescoço uma argola
de cobre, símbolo de realeza.
Catxinga, 5 de Junho de 1968.
Temos já um balanço negativo do cacimbo. Na verdade,
dois soldados deram em chalupas e lá foram para o
hospital dos malucos! Um deles peregrinou pela parada,
de joelhos, a rezar o terço. Depois, agarrou numa bacia,
borrifou o capitão com água fresca e traçou-lhe a sina:
haveria de ser padre e ter muitos filhos!
Catxinga, 12 de Junho de 1968.
Há pouco, um furriel batia com as mãos na cabeça como se
fosse um macaco e dizia desesperado: "Eu qualquer dia
mato-me, eu morro, eu já não sei o que digo".
É o cacimbo.
Catxinga, 7 de Setembro de 1968.
Tiroteio em Catxinga City! 10 minutos debaixo de fogo!
Acordei com o matraquear das metralhadoras. As balas
sibilavam no chão da parada e o estrépito do morteiro
ribombou com o estrondo das granadas caídas na encosta
do morro. Eram duas da manhã. Quando a cadência do tiro
intervalava, a caminho do fim, ouvia-se ainda cantar a
Breda, e a boa disposição dos nossos soldados decorava
uma pesada atmosfera de pólvora com insultos escabrosos
e maldições ao turra.
Ao romper d'alva, a frente Norte do acampamento estava
coberta de cápsulas e alguns panfletos convidavam os
sobas da sanzala a fugir para o Congo. Reparei então que
uma bala abrira um buraco a um palmo onde inclinara a
minha cabeça! Estou vivo!
Catxinga, 15 de Setembro de 1968.
O Leão chegou à sanzala. A PIDE esteve cá!
Os sobas foram presos. Dizem-me que, durante a viagem de
regresso, a PIDE matou alguns e lançou-os ao rio para
pasto dos vorazes jacarés.
Uma coisa é certa: se os sobas estivessem do nosso lado,
este ataque seria impossível. Diz Mao Tsé-Tung: "A
guerrilha quando tem as populações a favor é como o
peixe na água".
As mensagens do Mussuco e Catxinga passarão a ser
transmitidas em cripto.
Catxinga, 14 de Dezembro de 1968.
Acabo de fazer uma patrulha ao Tunguila. De regresso,
acampei na sanzala do Muginga. Entre as meninas que
brincavam no largo havia uma pretinha muito engraçada de
olhos grandes e vivos. Perguntei-lhe quem era. Ela
disse-me que era filha do soba de Muginga (que fora
preso pela PIDE e morrera de bala). Voltei a perguntar
onde se encontrava o seu pai e a pequenita começou a
chorar aquelas lágrimas de inocência que não têm culpa
de os homens serem maus a ponto de lhe matarem o pai.
Dei-lhe uns doces de fruta e ela fugiu para dentro da
palhota misturando um sorriso de gratidão com a amargura
da sua orfandade.
Catxinga, 27 de Janeiro de 1969.
Um ano de comissão! Mandei tocar o clarim a formar, fiz
uma breve alocução às tropas em parada. Em resumo,
frisei que não me dessem cabo do juízo. Por aqui
continuaremos encurralados, suportando a nossa cruz. Vou
prosseguir a leitura do Toynbee.
Catxinga, 15 de Fevereiro de 1969.
O Lopes, algarvio castiço, apostou comigo. Teimava que
eu não furaria um rolo de papel higiénico a 100 metros.
Primeiro, porque eu não acertava e, segundo, que uma
bala de G3 não vara o papel higiénico. Chamei
testemunhas, apontei a arma, disparei e o Lopes perdeu
uma cerveja.
Catxinga, 19 de Fevereiro de 1969.
Tenho aqui um furriel que, se não faz mais nada, pisca
os olhos e sacode os ombros. Um soldado que passe, se
lhe faz uma pergunta, responde logo: "Aguenta os
cavalos, que eu vou chamar os índios". Outro, por tudo e
por nada, sai-se com esta: "É à Lisboa. É à Lisboa".
Enfim, o cacimbo…
Catxinga, 10 de Abril de 1969.
No Mussuco, um valentão puxou de faca para um camarada.
Isto promete…
Catxinga, 4 de Janeiro de 1970.
O cabo Pedro, lisboeta castiço, um destes mosqueteiros
que enobrecem a genealogia de quantos aprendem a arte de
Júlio César, veio apresentar-me um poeta que reza assim:
Maçarico!
Se puderes resistir à solidão que te rodeia
Sem ficares meio maluco;
Se puderes aguentar as patrulhas a pé
Sem no regresso ficares cinco dias de cama;
Se suportares o arroz, a massa e o feijão
Sem ficares com uma úlcera no estômago;
Se tiveres calma para escutar os teus superiores
Sem sentires vontade de fazer o contrário do que te
estão a dizer;
Se conseguires passar pela Missão
Sem sequer olhar para a Elisa;
Se passares os vinte e quatro meses
Sem ouvires uma única vez a "Hora do Soldado";
Se saltares o arame que rodeia o destacamento
Sem o alferes dar por isso;
Se em todo o tempo que estiveres no mato
Não pedires um isqueiro ao Movimento Nacional Feminino;
Se conseguires roubar um cabrito
E convidar o próprio dono para o ajudar a comer;
Se fores capaz de ver o bife que te dão ao domingo
Sem necessitares de usar óculos;
Se chegares ao fim da comissão
Sem o comandante de destacamento descobrir que lhe
roubaste três frangos;
Se fores capaz, ao longo da tua comissão
De fazer tudo isto,
Então, sim,
És um verdadeiro velhinho!
A de roubar o cabrito foi partida que fizeram ao
Rovisco, alentejano e bom rapaz. A dos frangos foi
comigo… Já me quiseram dizer quem foi o autor do crime,
mas prefiro não saber.
Catxinga, 8 de Fevereiro de 1970.
Os maçaricos [da CArt2671] estão a chegar! Prepara-se
uma recepção solene. No tronco de uma árvore, uma tábua
escrita reza assim: «Maçarico, se você demorasse mais
uma hora, todos os velhinhos se enforcariam!» Na barraca
da enfermagem: «Matadouro Municipal». Na casa do
comerciante: «Caixa Geral de Depósitos». Na messe dos
furriéis, está pendurado um boneco promovido a deus da
guerra - O «Xalavadunga».
Luanda, 20 de Março de 1970.
Dois soldados pegaram-se à bulha. Um deles era açoreano.
Já escorria sangue no ardor raivoso da refrega quando o
ilhéu consegue atirar o adversário ao chão. O miserável
vencido fica à mercê do terrível gladiador. Naquele
instante, passa por ali um gato e o castigador vitorioso
mata-o à cacetada.
Logo se volta para o desgraçado a seus pés e remata
assim: «Isto é para não te matar a ti!»
(in:
http://dramapessoal.wordpress.com/2008/01/30/o-matar-do-tempo-dois-diarios-da-guerra/
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