TRABALHOS, TEXTOS
SOBRE OPERAÇÕES MILITARES ou LIVROS
Elementos cedidos por um
colaborador e por um membro da equipa do portal UTW
Diamantino
Faria
Diamantino Faria, jornalista da
imprensa angolana, acompanhou as tropas
portuguesas nas operações de recuperação no
norte de Angola, relatando nesta obra a coragem
dos defensores da pequena aldeia de Mucaba
(12Abr61-23Jun61).
O livro:
"Destino:
Mucaba"

título: "Destino: Mucaba"
autor: Diamantino Faria
editor: Companhia Nacional Editora
1ªed. Lisboa, 1962
246 págs
Com a devida vénia ao Museu RTP
(Emissora Nacional):
Transcrição do guião radiofónico - Onda Curta Emissora
Nacional - “Parágrafos de literatura ultramarina” -,
programa de Amândio César agendado para as 20H00 do dia
10 de Agosto de 1965:
«DIAMANTINO
FARIA
Natural da
Metrópole, mas largos anos residente em Angola, onde
trabalhou na Imprensa de Luanda e na Rádio, Diamantino
Faria havia de revelar-se romancista, quando os ventos
terroristas começaram a soprar do Congo ex-Belga para o
Congo português. Seus romances são, por isso, um sólido
testemunho dos acontecimentos que vão de 1959 a 1961;
isto é: desde a aventura de Lumumba até à eclosão dos
acontecimentos de Angola. O jornalista esteve antes do
romancista nos locais onde a acção do seu romanesco se
desenrola; mas o romancista soube aproveitar esta
experiência, a mais profunda de toda a vida profissional
de Diamantino Faria. Daí o cunho de verdade patente nas
páginas de “Tormenta em África” – um romance que decorre
no Congo ex-Belga, com ramificações para o território
português de Angola; e também o cunho real quotidiano,
patente nas páginas vivas, vividas, autênticas de
“Destino Mucaba”, com certeza o melhor de seus livros.
Na larga
sequência de uma literatura que veio desta guerra que
nos movem em África, estes dois livros são repositório
precioso de factos que o autor foi apontando, no
dia-a-dia, e testemunho ocular de muitas coisas que o
autor pode constatar estando presente nos acontecimentos
que relata. Exactamente esse cunho de autenticidade é
que dá valia a uma obra já de si interessante e
importante para julgarmos estes dias passados, no seu
confrangedor dramatismo. Diamantino Faria soube estar
atento a tempos como esses e daí a vivacidade das suas
descrições a quase oralidade do seu estilo de escrever.
Efectivamente assim é: ele escreve como se falasse ou
como se dialogasse para dentro consigo próprio. Não há
construção na acção. Os dois romances são quase só
factos e acção, como cumpre a um romance da aventura
humana, situado onde os factos o fizeram assim e não de
outra maneira.

Escolhemos
algumas páginas do segundo livro de Diamantino Faria:
“Destino Mucaba”. São elas que nos darão uma imagem
rápida do que foi a guerra em Angola, em 1961.
GUERRA EM
ÁFRICA
Três horas
havia de luta. Os dois “jeeps” eram ineficaz trincheira
contra o fogo das armas automáticas e gentílicas,
escondidas no capim alto, a fazer da estrada ilha
perdida em oceano imenso.
A par da
confusão do disparo, cerrado, de todos os lados, a
gritaria de milhares de vozes guturais, ululantes,
cantando antecipada vitória, era ensurdecedora.
Ininteligível, o articulado das frases, para quem do
dialecto não possuía ponta de conhecimento, era melopeia
ao mesmo tempo gritante e adormecente, insuportável e
arrasante.
O soprar
quente da rajada tropical trazia estranhos odores de
corpos suados, o gentio, invisível mas presente na
capinzal imenso.
Acocorados,
tensos, de nervos esticados, os nove homens da secção
procuravam fundir-se com o metal das viaturas, em
posições incríveis, de contorcionistas circenses. Suados
eles também, a pontos de o vestuário ser uma espécie de
papa de transpiração e poeira, esticavam raivosamente os
gatilhos das metralhadoras ligeiras, até os carregadores
já não responderem com o seu tac-tac-tac característico.
Mudavam-nos mecanicamente e voltavam a disparar, contra
um inimigo cem vezes superior em número e cumpliciado
pelo mato reverdecido por boa época de chuvas.
Agachado,
serpenteando ao sabor da curva do guarda-lama do “jeep”,
o alferes Esteves ia gritando palavras de estímulo, que
se perdiam amalgamadas no pipoquear das armas.
- Aguentem,
rapazes, que deve estar por pouco. Os filhos de uma vaca
hão-de mostrar-se, para nos atacar à arma branca… Então
é dar-lhes pela certa.
Ninguém o
ouvia. Mas ele confortava-se com a ideia de o inimigo se
“materializar” e se colocar na linha de mira, para o
tiro deixar de ser cego.
Era o baptismo
de fogo da primeira secção do seu pelotão, chegado dois
dias antes a Luanda. Sem o querer, o oficial recordava,
no meio daquele inferno, o orgulho sentido ante os
aplausos de uma multidão imensa, ao longo da Avenida
Marginal, beijada pelo Atlântico e bordejada por
imponentes construções modernas, logo após o desembarque
do "Niassa". Sentira logo que estava com a sua gente.
Tinham recebido mais palmas que o Benfica, ao cilindrar
turma estrageira, em tarde feliz, no Jamor ...
O pensamento,
como bola infantil jogada por garoto irrequieto,
saltou-lhe para a ideia de que aqueles oito homens, em
apuros como ele, estavam confiados à sua guarda. Seria
responsável por quanto lhes acontecesse. E considerava
extraordinário, sorte mesmo, não lhes ter ainda
acontecido nada. Aturavam o fogo dos terroristas havia
já cento e oitenta largos minutos. As balas e cargas dos
canhangulos choviam em redor, espinoteando na chaparia
do “jeep” e, uma que outra vez, nos incómodos capacetes,
quentes como o inferno, onde deixavam marca das
impotentes arremetidas.
Tentou girar a
cabeça para dar uma olhadela aos seus homens. Só
conseguia, porém, descortinar o “Casmurro” enlatado
entre a roda suplente e a chaparia latera da viatura.
Todos os músculos contraídos, na cara angulosa, da qual
o nariz, adunco, pingava como a querer cair, o soldado
Pinto esbugalhava os olhos, simultaneamente por pavor e
por vontade de descortinar um só que fosse dos inimigos.
Aquele primeiro contacto com díscolos daria ao
“Casmurro” motivo para, durante oito dias, maldizer a
vida, o ter nascido Diogo Cão, por ter chegado em tempos
remotos, às paragens angolanas.
O alferes
Esteves ainda tentou espreitar, para o lado contrário o
que estaria acontecendo aos restantes homens da secção.
Mas o raio visual não lhe alcançava além do
depósito-reserva de gasolina nas traseiras do “jeep”.
Absorvidos,
cada qual, nos mais díspares pensamentos, nem deram pelo
cessar fogo da parte contrária. Foi o oficial quem
primeiro atentou na trégua. Nenhum mexia um milímetro de
músculo, sequer, mesmo para movimento indispensável.
O cabo Menezes
acordou da letargia em que a inusual posição o
prostrara.
-Eh, malta,
parece que os gajos pararam…
Nesse momento
aperceberam-se do roncar do avião. Vindo das entranhas
do céu, o aparelho da Força Aérea dirigia-se para os
dois “jeeps”, a perder altura para quase ir rasar as
viaturas. Depois retomou o espaço, em espiral airosa,
para a seguir picar sobre o capim. Nas asas, as
metralhadoras cuspiam fogo. Ondeando, o mato fazia
lembrar esverdeado oceano, de vagas mansas e curtas.
Eram os terroristas na tentativa de alcançar a floresta,
para fugir a merecido castigo. Implacável, o
“pássaro-de-metal” perseguia-os, a cortar-lhes a
retirada. E muitos foram ficando, para sempre,
“sepultados” no capim, alto mais de um metro.
Aparvalhados,
os soldados, mortos de fadiga e agora com mais pavor do
que antes, quando o perigo era efectivo mas não tinham
tempo para pensar nele, olhavam, imóveis ainda, as
evoluções airosas do avião.
Foi o cabo
Menezes o primeiro a reagir. Saltando da caixa do carro,
em pulo simiesco, libertou-se do capacete, para o acenar
enquanto gritava um “obrigado” aos rapazes da Força
Aérea, que não podiam ouvi-lo.
Nesse momento
preciso, o estrondo, seco, soou. Apanhado de frente, bem
no meio da testa, sem se aperceber do que lhe
acontecera, o cabo Menezes caiu, em prancha, no saibro
enlameado da estrada.
A menos de dez
metros, em fácies desvairado, de preto, surgia do capim,
como imagem fantasmagórica de cabeça suspensa do nada.
Rápido como rato, o soldado Martins, que se desalojava
do carro, carregou o gatilho. A rajada saiu cantante. E
a cabeça preta, horrível, transfigurada, inumana,
afundou-se no capim. »

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