Elementos cedidos por um
colaborador do portal UTW

Ernesto Fonseca
Ernesto Fonseca nasceu em Gondomar,
em 7de Novembro de 1943, e cresceu
em aldeias de Trás-os-Montes e Beira
Alta. Frequentou a Faculdade de
Ciências de Lisboa, em 1963/64, e
foi mobilizado para a Guerra do
Ultramar em 1965.
Como Alferes Miliciano de Cavalaria
viveu [cumpriu] a sua comissão em
Angola [Setembro
de 1965 a Março de 1969],
particularmente no Leste, onde
passou à disponibilidade em 1969.
Não regressou a Portugal, tendo
recomeçado a vida civil em Luanda,
onde constituiu família.
Fonte:
https://www.smashwords.com/books/view/563811
O livro:
"Por xanas do
Leste de Angola"

título: "Por xanas do Leste de
Angola"
autor: Ernesto Fonseca
editor: Chiado
1ªed. Lisboa, 23Jun2015
434 págs
21,7x14,1cm
pvp: 13 €
ISBN: 989-51-3821-0
– «Em Outubro de 1968 fui destacado
para o Esquadrão de Cavalaria 403
aquartelado no Luso (hoje Luena),
província do Moxico, no Leste de
Angola.
O quartel, construído com chapas de
zinco, tinha servido aos mercenários
de Tshombé, fugidos do Katanga e
acolhidos pelo regime português. A
partir do meio-dia o calor dentro
destas instalações era infernal e
assim se mantinha até de madrugada,
quando arrefecia.
O esquadrão, comandado pelo capitão
Rocha Pinto, era constituído por
militares angolanos e portugueses.
Éramos quatro alferes: eu (Ernesto
Fonseca), o Moniz, o Ferreira e o (
???).

Seis meses depois de chegar a este
esquadrão, em Março de 1969, a minha
comissão começada em Setembro de
1965, aproximava-se do fim.
Sentia-me ansioso e supersticioso.
Analisava situações do dia-a-dia, as
mais simples, e dizia para comigo
que me safava se acontecesse de
certo modo ou me lixava se
acontecesse ao contrário. Ao
caminhar em pavimentos de mosaicos,
não pisava as juntas para não dar
azar... Nunca saía do quartel sem
levar um pequeno cartão religioso de
Feliz Natal, enviado pela minha
irmã. Ainda o tenho, desbotado pelo
tempo e pelas chuvadas que naquela
altura o encharcaram.
Na secretaria do quartel já se
encontrava a minha guia-de-marcha
para regressar a Luanda e passar à
disponibilidade. A tropa estava a
chegar ao fim. Iam terminar as
incursões ao triângulo do Lumege,
iam chegar ao fim os percursos
tensos através de picadas onde a
guerrilha colocava as minas. Uma
bomba, lançada pela nossa aviação,
não rebentou, amortecida pelas copas
das árvores, foi cuidadosamente
armadilhada na picada e deflagrada à
distância, por comando eléctrico.
Para mim, tudo isto ia ficar para
trás.
Mas uma noite, pela hora do jantar,
chegou a notícia de que a PIDE tinha
capturado um guerrilheiro do MPLA e
que era preciso sair imediatamente
com dois pelotões para assaltar o
acampamento de onde ele tinha vindo
e que os pelotões a sair eram o meu
e o pelotão do Moniz. Um arrepio de
frio percorreu-me as costas e
ficou-me embrulhado no estômago. Não
me lembro se jantámos. Entrámos para
os Unimogs e mergulhámos na noite,
entontecidos pelos buracos da picada
e pelo medo. Medo das minas, medo de
uma emboscada e medo do que nos
poderia acontecer durante o assalto.
Com a minha guia-de-marcha na
secretaria, para regressar a casa,
eu já não devia estar ali a correr
aqueles riscos. Ia ter azar...
Finalmente os carros pararam, de
madrugada, já o céu clareava.
Avançámos a pé, em fila indiana, com
o guerrilheiro à frente a ensinar o
caminho até que avistámos uma mata
muito densa. O acampamento era ali.
Escolhi um pequeno grupo do meu
pelotão e o Moniz fez o mesmo.
Formámos uma linha paralela ao
acampamento. Eu ia do lado esquerdo.
Regulámos as espingardas G3 em modo
rajada e, a um sinal, iniciámos a
aproximação cautelosa. Uns metros
mais à frente começámos a correr,
com o olhar fixo naquela mancha
escura de silvados e espinheiras, de
onde podia vir a morte. Galhos de
árvore batiam-nos na cara e o medo
acelerava-nos a corrida. Alguns
caíram por tropeçarem em pedras e
buracos. Mas chegámos lá. O coração
batia descompassadamente, as mãos
estavam escalvinhadas na arma,
desesperadas para começar a fazer
fogo. Mas nada, nem um tiro. O
acampamento tinha sido abandonado.
Deixaram as cubatas vazias, mal
cheirosas e cheias de pulgas. Tive
sorte...
O guerrilheiro foi interrogado.
Tinha de dizer para onde fugiram. E
disse. Disse que havia outro
acampamento. O Moniz tropeçara
durante a corrida e estava com um pé
inchado. Não havia alternativa, eu
tinha de continuar com o meu
pelotão. Cá estava de novo... o
azar!
Eram seis da manhã. Tínhamos os
cantis cheios de água, num bolso
guardamos uma lata de conservas e no
outro metade de uma sêmea. O resto
da carga, suportada por cada um, era
composta por munições.
Levávamos dilagramas (granadas
disparadas pelas espingardas). Nada
de morteiros, nem rádio para
comunicar. Os rádios não tinham
alcance, eram muito pesados e
avariavam. Levei comigo um
enfermeiro.
Começámos a caminhar ao longo da
xana (planícies imensas do leste de
Angola, sempre com água e capim). O
guerrilheiro à frente. À uma da
tarde, o sol estava a pique. O calor
era sufocante, transpirava-se, os
mosquitos rodopiavam à frente dos
olhos, os gafanhotos e outros
insectos não se calavam. Ao longo da
tarde, os cantis foram-se esvaziando
e cada um de nós foi sucumbindo à
sede. Contrariando todas as
recomendações, ajoelhávamo-nos,
afastávamos o capim e bebíamos
sofregamente. Que se lixasse tudo...
Pelas cinco da tarde, o prisioneiro
avisou que estávamos a chegar.
Calculei que este segundo
acampamento também estaria
abandonado, pois há muito que nos
teriam avistado. E assim foi. Quando
chegámos, no meio de uma pequena
mata, lá estava o acampamento
abandonado. Incendiámos as cubatas,
montámos uma segurança e descansámos
meia hora. O terreno estava seco. E
agora? Agora era preciso voltar para
trás até aos carros.
Mais doze horas de marcha.... Éramos
um grupo de trinta jovens, exaustos,
esfaimados, sem comunicações, no
meio de nada, mas conscientes de que
não estávamos na nossa terra e que à
distância havia olhos a observarem,
à espera que baixássemos a guarda,
enfim, que nos fossemos abaixo.
Sentia-se a hostilidade. Não se
podia parar muito tempo para
descansar.
Caminhámos até cerca da uma hora da
manhã, sempre na xana alagada, até
que começámos a subir um pequeno
outeiro arborizado. Dei ordem para
se montar uma segurança e fazer um
alto de meia-hora para descansar.
Tirei as botas e as meias. A pele
dos pés estava branca, encarquilhada
e destacava-se com facilidade. O
enfermeiro aplicou-me sulfamidas e
curitas. Os pés voltaram a entrar
nas botas mas à força. No fim do
descanso levantei-me com dificuldade
e, tal como os outros, recomecei a
marcha. Arrastávamo-nos penosamente,
conscientes que esta era a fase mais
perigosa. O inimigo sabia que
estávamos no limite das forças, a
noite era pouco escura e a mata
rarefeita. Estavam reunidas
condições para sermos flagelados ou
cair numa emboscada. Rejeitámos as
orientações do guerrilheiro e
começámos a fazer largos
zigue-zagues para não denunciarmos o
nosso rumo.
E, finalmente, chegámos junto dos
carros, talvez pelas três ou quatro
da manhã. Reiniciámos o regresso ao
Luso. Sentei-me ao lado do condutor
de um Unimog e adormeci
instantaneamente. Estivera acordado
durante quarenta e seis horas e
tinha caminhado durante mais de
vinte e cinco. Despertei com a
entrada na cidade. Fiquei ofuscado
pelo sol da manhã e pela brancura
dos edifícios.
No dia seguinte, o capitão disse-me
que para mim a guerra tinha acabado.
Não voltaria a sair!...
Afinal não
tive azar...
De regresso a Luanda, no comboio
entre o Luso e Munhango, um sargento
que vinha de Mavinga contou-me que o
alferes Ricardo Martins tinha sido
abatido com uma bazucada, seguida de
um tiro na cabeça.(nota) Uns meses
antes, eu e o Ricardo tínhamos
alugado um apartamento a meias em
Nova Lisboa. O Ricardo teve azar...
Já em Luanda, logo que possível, fui
até à praia. Enfiei os calções,
caminhei pela areia molhada e
mergulhei. Senti a água a
percorrer-me o corpo e a
distender-me os nervos. Abri os
olhos e percebi que o azul daquelas
águas cristalinas escondia o meu
futuro. Ia ter direito ao meu
futuro.
Fiquei em Luanda, onde casei e tive
uma filha. Jurei que concluiria o
quinto ano de Engenharia Civil
quando ela fizesse cinco anos.
Cumpri esse juramento. Já em
Portugal, fundei a Efiefe, uma
empresa de serviços de engenharia
que, decorridos 24 anos, ainda
funciona.
Reformei-me. Agora vêm aí outras
guerras. Eu talvez ainda dê uma
ajuda mas, quem vai lutar é uma
outra vaga de jovens que têm os
genes daqueles que andaram meio
perdidos a lutar pelas xanas e matas
de África.
Heroicamente... »
(Ernesto Fonseca, in "Por xanas do
Leste de Angola"; Jornal de
Notícias, Porto, 23Fev2011)
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(nota)
nota da equipa do UTW:
– aquele relato é ficcionado: no
referido mês (Março de 1969), nenhum
oficial do Exército Português
faleceu no teatro-de-operações de
Angola; tal como em todo o período
da Guerra do Ultramar, e em nenhum
território ultramarino, faleceu
algum militar com o referido nome.