
TRABALHOS, TEXTOS
SOBRE OPERAÇÕES MILITARES ou LIVROS
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elementos cedidos por LC123278
Francisco Marcelo Curto
Francisco Manuel
Marcelo Monteiro Curto: nascido em 1939 em Santa
Margarida (Idanha-a-Nova). Licenciado em Direito pela
Universidade de Lisboa; militante do PCP, cumpriu
serviço militar como alferes miliciano de infantaria no
noroeste de Angola em Jun61-Jun63; em 15Mai69 participou
em Aveiro no Congresso da Oposição, integrando
seguidamente as listas de candidatos a deputados pela
CDE. Entre os anos 60 e 70 colaborou com vários
sindicatos nacionais, tendo estado na fundação da
Intersindical em 01Out70. Advogado consultor de vários
sindicatos. Participou na preparação e nos trabalhos do
III Congresso da Oposição Democrática, realizado em
Aveiro em 04-08Abr73. Em finais de Set73 integrou as
listas de candidatos a deputados da CDE/PCP, mas fez
parte do Secretariado Nacional do Partido Socialista,
antes e depois do Congresso de Dezembro de 1974. Em
19Set75 secretário do Trabalho e em 23Jul76 ministro do
Trabalho; em Jan77 saiu da CGTP-IN para ser co-fundador
da UGT. Foi deputado entre 1975 e 1987, tendo ainda
liderado nos anos 80 a tendência «Esquerda Laboral» no
interior do PS.
Posteriormente, professor universitário de Direito do
Trabalho. Faleceu no início de Fev2001, com 63 anos.
"Tu
Não Viste Nada em Angola!"
"Tu
Não Viste Nada em Angola!"
autor: Francisco Marcelo Curto *
editor: Centelha
1ªed. Coimbra, 1983
145 págs
preço: 15€
– Recensão
(21Out2007):
São muitos os ex-combatentes da guerra colonial que nos
retratam as suas aventuras, os seus dramas, os seus
medos, as suas impressões, as suas angústias vividas no
teatro de guerra que passa, quase sempre pelo norte de
Angola. Em forma de novelas, crónicas, contos ou simples
diários, vão-nos relatando as suas experiências vividas
no auge da juventude. Muitos deles passaram pelo Quitexe,
pelo que é recorrente encontrarmos o nome desta vila nas
suas memórias vertidas para o papel.
O livro que trazemos hoje, de Francisco Marcelo Curto, é
um desses casos. "Tu não viste nada em Angola", [...] é
a descrição de uma campanha que começa em Junho de 61
com a chegada a Luanda e só termina dois anos depois em
63. As primeiras impressões em Luanda, depois a partida
para o norte, a guerra cruel como todas as guerras, e já
a percepção de que nada fazia sentido.
Nesta altura a guerra encontrava-se no auge naquela zona
de Angola. O Quitexe era terra maldita. Não era com
agrado que os soldados lá regressavam:
– «Não digo nada. Já ando a dar ordens, os soldados
resmungam, mal acabam de aquecer a canja da ração e de a
comer e "vamos voltar ao Quitexe". Tenho que esconder
que também não estou de acordo. Dou a volta à parede –
resto da casa em que os pretos comprariam a sua fuba, os
panos, o sal, o açúcar. A malta está aborrecida com a
volta ao Quitexe. E eu disfarço.»
O Quitexe retratado como terra de pó, tascas sujas e
administrador vestido de branco:
– «Outra vez a morte, desta vez em promessa. "Na semana
passada mataram um soldado a sete quilómetros", diz-nos
o tasqueiro. As casas sujas, com o pó a trepar pelas
paredes, a garrafa de cerveja fica com lama quando a
ponho em cima do balcão. O Sol é uma pata lá fora. Vou à
frente desta vez. Uma preta com o filho pegado às costas
pelos panos compra peixe seco no extremo do balcão. A
loja sebenta. "Levo pró caminho…", diz o Quatro Quinze.
É o nome dele. Um minhoto com cara de vaca, bonacheirão,
mostra-me as garrafas de cerveja, os olhos dentro de um
círculo de pó. Sinto-me mal. "O pior é a vinte
quilómetros. Uma ravina lixada, toda coberta de mata…",
não ouço o tasqueiro, vou-me daqui. Os criados negros
carregam – ou descarregam? – café para um armazém. O
alfaiate no alpendre toca a máquina, diligente. O
Fernando desaparece no capim com uma preta. Os pés
pesam-me. Sento o corpo, espero o resto da coluna. O
Sorna especa-se à minha frente, bebe cerveja como todos
fazem. "Então, chateado?", pergunta. Levanto os olhos e
sorrio, mal, sei bem que me é impossível. O tipo aponta
com o queixo a estrada e acaba por ficar a olhar, "Deixe
lá, não vai haver nada!", sempre a pensar que para ele
não vai haver nada.(…)
Tudo muito quieto, que horas são? O sol queima, isso é
que é certo. Dois brancos olham para os militares por
ali. Reis da terra, mas inquietos.
O resto das viaturas vai aparecendo. O Administrador
fala com um cipaio, todo vestido de branco, ventrudo,
pernas abertas, no alpendre da sua casa. "Porque é que
ele estará vestido de branco?" Caminho para o jeep e
espreito a estrada mergulhada na mata. Um vento
misturado com sol atinge-me quando atravesso a rua.»
À medida que avançam os combates as consciências vão-se
inquietando e coloca-se em causa o sentido desta guerra
inglória:
– «No dia seguinte, bem de manhã, o Cap. e o Marques vão
para um lado com o grupo. Eu vou para o outro. O guia é
um voluntário. Caminhamos duas horas por carreiros
tortuosos, sempre a subir à procura da sanzala, sempre
nas elevações. Às nove da manhã, uma clareira, bananas,
feijoeiros, sinais frescos "deles". De repente, na
encosta em frente, uns vultos negros e logo duas, três,
seis rajadas. Os vultos mexem-se, fogem, são "eles"
enfim, "eles que os soldados nunca viram, "eles", os
odiados negros inimigos. Faço parar o fogo. Vamos ao
outro lado. Pela orla da mata, tentar apanhar alguém.
De baixo de um tronco, gemidos e um vulto negro. De
baixo de outro uma mulher, farrapos cinzentos e sujos, e
uma miudita que tenta escapar e é logo agarrada. No
tronco dos gemidos o voluntário, com um medo que se lhe
vê no corpo, dispara duas vezes a mauser. Os gemidos
calam-se. Puxámos o vulto. É uma rapariga de nove ou dez
anos. Arranco a arma ao voluntário. Culpo-me e
esbracejo. A morte fica ali. O maqueiro faz um penso no
tornozelo da mulher, carregamo-la na maca, com protestos
dos soldados. E a miudita que parece ser sua filha. No
dia seguinte regressamos. Agora a cena é de raiva e
culpa, revolta, àquela gente que de manhã plantava
mandioca e não esperava os tiros. São aqueles os
inimigos? A miudita vive connosco até mais ver. Os
soldados tratam-na como a filha que têm ou querem vir a
ter. A mãe (?) está internada no hospital de Luanda. Vai
ser interrogada. Deve ser um prisioneiro valioso. O que
se passou é fundamental para mim. "Não teve culpa, meu
alferes", diz-me o Fernando. E não tive? Podia ter
evitado a morte desnecessária? Claro que podia. Não
importa saber isso agora. O que importa é a gratuitidade
de tudo isto. Daqui a poucos dias o meu filho distante
vai fazer três anos. Também ele pode ser morto enquanto
brinca no quintal, ao pé da figueira? Morto de manhã
enquanto o pai mata por aqui? Também onde ele está o
perigo existe? Ou lá não há guerra?
A minha mãe diz: "São coisas que acontecem. Ninguém é
responsável e tu muito menos". Se isto fosse bastante!».
(in
http://quitexe-literatura.blogs.sapo.pt/1387.html)
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