João
de Melo nasceu nos Açores, em 1949. Aos 11 anos, deixa a
sua ilha natal para prosseguir os estudos no continente,
como aluno interno do Seminário dos Dominicanos, onde
permanece entre 1960 e 1967. Abandonado o seminário,
passa a viver em Lisboa, prosseguindo os estudos
enquanto trabalha e iniciando colaborações na imprensa
escrita. É, aliás, num jornal, o Diário Popular, que
publica o seu primeiro conto, aos 18 anos. A partir de
então publicará contos, crítica literária e poemas em
diversos periódicos de Lisboa e dos Açores,
integrando-se na geração literária que, sediada em Angra
do Heroísmo - e ligada ao suplemento literário do jornal
A União - renovou a literatura açoriana contemporânea.
A incorporação no exército, com o posto de furriel e a
especialidade de enfermeiro, em 1970, e a posterior ida
para Angola, onde permaneceu 27 meses numa zona de
guerra [Companhia de Artilharia 3449 / Batalhão de
Artilharia 3859], marcá-lo-ão em termos pessoais e literários,
sendo tema de vários livros seus, de que se destaca, na
ficção, Autópsia de Um Mar de Ruínas, romance que é uma
referência na literatura portuguesa sobre a guerra
colonial.
Já após a revolução de Abril de 1974, João de Melo
licencia-se em Filologia Românica pela Faculdade de
Letras de Lisboa, mantendo sempre colaboração em
diversas revistas literárias (Colóquio-Letras, Vértice
e, mais tarde, Sílex, Ler, etc.). No início da década de
80, torna-se professor do ensino secundário, actividade
em que reparte até hoje o seu tempo com a escrita
literária.
O
livro:
"Autópsia
de um Mar de Ruínas"

título:
"Autópsia de um Mar de Ruínas"
João de Melo e Círculo de Leitores
Impresso e encadernado por Printer
Portuguesa
no mês de Abril de 1987
Número de edição: 2062
Depósito legal número: 14691/87

Autópsia de um Mar
de Ruínas é uma das mais importantes obras
ficcionais que se escreveram sobre os anos de fogo que
selaram a presença de Portugal em África e um romance de
referência da literatura portuguesa sobre a
guerra
colonial.
A sua obra está traduzida em alemão, francês,
castelhano, romeno, italiano e inglês.
in:
http://www.webboom.pt/ficha.asp?id=74459
"À da Canda, amor,
aos morros do Seixel vai demoradamente fixar-se a
amargura das noites de guerra. Calambata, sabes?, é uma
trégua fuzilada, um morto que não morre mas adormece.
Aqui o tens vivo, as mãos fechadas sobre a sua
metralhadora. Pior do que estar de sentinela, pior que
tudo são as chamas ao longe, os olhos que me vigiam.
Sente-se um homem espiado pelas próprias árvores,
ouvindo carrilhões impossíveis na calada da noite.
Escrevo-te, amor, por não saber nem o dia nem a hora.
Com o medo de estar apenas vivendo à beira do medo. Que
escrevo. Colunas partem à Magina, recebem de volta a
notícia dos ataques aos quartéis do Norte, o M'Pozo, a
Mama Rosa, a Madimba, o Luvo, e a gente pensa que há-de
ser um dia também a destruição de Calambata, amor. Amor,
diz-se já que Calambata é apenas o som da nossa
respiração: ama-se a vida devagarinho, como nos repugna
o cheiro a bálsamo dos mortos que partem a qualquer hora
do dia. Palavras dispersas pingam da infusa do silêncio.
Palavras. As palmeiras, por exemplo. Os imbondeiros, as
mulembas. Perderam a memória dos séculos. Um dia, amor,
as armas serão somente objectos de museu: os campos
hão-de lavrar-se com charruas, nas oficinas trabalharão
bigornas, puas, enxós, o esmeril das mãos que nos
combateram, e a piaçaba dos cabelos encher-se-á da
poeira das madeiras, nas serrações. Era bom, amor, que
se ouvissem os guindastes nos cais, os alcatruzes das
noras, o uivo do vento nas grandes searas do Sul. Bom
que o mar erguesse a voz um pouco acima do sal até à
alegria das lágrimas. Amor, é provável que não existam
brancos inimigos nas picadas de Nambuangongo. Os brancos
não podem, amor, continuar, aqui nas serras da Calambata,
a alimentar a morte das minas, dos morteiros e dos
canhões. Será chegado o tempo, de se cobrirem as
crateras das granadas, de despoletar os trilhos, de
pintar os furos das balas no corpo das árvores da Binda.
Por isso te escrevo, amor, antes da minha morte. Nunca
pisei uma lavra de milho ou mandioca, sabes? Escrevo.
Não chicoteio o suor do negro da tonga. Não troco meu
sapato velho, minha cerzida camisa, meu garrafão de
aguardente, pelo corpo da menina no alembamento.
Escrevo, amor: reconstruí vós as sanzalas de quantos se
foram embora, para que possam ainda regressar, viver.
Pergunta-lhes por mim, amor. O que fazia. O que
inventava por vezes. O que escrevi eu aqui. Que branco
caçambuleiro esse, que diferente estava me chamar ainda?
Que branco esse, polícia lhe tinha raiva, lhe estava
sempre xingar a voz da denúncia, quase mesmo ia caindo
na prisão do esquecimento? Que branco, amor? Minha pele
tem o ardor das anchovas da ração de combate, da pasta
de fígado (os perseguidos guerrilheiros sul-africanos,
lembras-te, amor?). Mas tudo isso eu fui trocando pelo
desejo e pelo gosto da moamba de galinha e pelo ácido do
abacaxi com pancadinha discreta na curva do ombro, como
a dizer: coragem!
É o que escrevo aqui,
sentado na noite. No sítio onde estou, amor. De frente
para os morros que cercam Calambata cercada de guerra
pelo Norte. A pensar, amor, que há em mim um morto que
não morre."
João de Melo
in:
Autópsia de Um Mar de
Ruínas
Fonte:
http://www.malhatlantica.pt/lestrangeiras_esag/navegar_e_preciso.htm
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BArt3859 - História da
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