título: "No planalto dos Macondes"
autor: Joaquim Manuel Penim
editor: (O Autor)
1ªed. Sesimbra, Mai2004
210 págs (ilustrado)
Índice:
- Prefácio
- A viagem
- Nangololo
- A Companhia
- 6 de Dezembro de 1968
- 7 de Dezembro de 1968
- 8 de Dezembro de 1968
- Muidumbe
- 13 e 14 de Dezembro
Excerto
(pág. 82/3):
- «Eu era o homem de minas e
armadilhas que estava mais perto,
pelo que me coube tomar conta da
ocorrência. O Capitão apenas me
disse: "Cuidado...!" Podíamos estar
a ser observados e era importante
não fazer muito barulho, até porque
entardecia já e não sabíamos se
teríamos de pernoitar por ali. Eu
sentia o coração bater
acelaradamente, quando comecei a
afastar a terra solta que cobria
algo que eu não divisara de
imediato. Lentamente, sem
pressionar, fui afastando a terra,
deixando a descoberto um enorme
pedaço do bojo de uma bilha de
barro, ou coisa muito parecida. O
caco tinha-se partido pela pressão
da pata do cão quando por ali passou
e tudo indiciava que estávamos na
presença de um fornilho. Estava
muito tenso, mas não tremia. Deitado
no chão, estiquei o braço direito e
introduzi a mão no buraco, tentando
adivinhar pelo tacto o que estaria
por baixo do caco. Era um buraco com
cerca de trinta centímetros de
diâmetro e pouco fundo, do qual,
numa primeira prospecção, retirei o
pedaço de barro que tinha caído lá
para dentro. Cuidadosamente, voltei
a introduzir a mão e, tacteando,
encontrei duas granadas, com as
alavancas pressionadas de encontro
ao caco. Uma delas ainda tinha a
cavilha de segurança colocada, a
outra não. Tinha de ter a certeza
absoluta disto, para depois tentar
agarrar a granada que estava
descavilhada. Não sei quantas vezes
introduzi e tirei a mão daquele
buraco, até que, pensando conhecê-lo
como se a minha vista enxergasse
para lá do caco, envolvi com a mão a
alavanca e, num movimento rápido,
segurei a granada e a alavanca ao
mesmo tempo, enquanto rebolava no
capim, afastando-me daquele local o
mais possível. Passaram-se segundos,
minutos ,para mim, talvez, e mais
nenhum som se ouviu, além do
restolhar que eu provocara.
Levantei-me... O buraco ficara a
descoberto deixando visível a outra
granada, que apenas estava ali para
rebentar por simpatia. Agarrei-a com
a mão esquerda e esperei que o
Capitão colocasse uma cavilha de
segurança naquela que eu segurava na
mão direita. O Capitão pediu-me as
granadas, mas eu continuava ali de
braços esticados para ele, como que
alucinado, não conseguindo abrir as
mãos. Todo eu tremia quando, ao fim
de algum tempo, abri as mãos e ouvi
o Capitão dizer: "Penim, vai lá para
trás!»
Recensão:
- «O Joaquim Manuel Penim
é aqui de Sesimbra. É uma pessoa que
eu conheço e que estimo e que
encontro de vez em quando, como
aconteceu há poucos dias na Venda
Nova, onde eu estava a comprar
lenha, para aquecer estes dias
frios, e ele apareceu, também
interessado em saber o preço da
lenha. E também conheço o irmão, o
Amadeu Penim, que foi Presidente da
Câmara Municipal de Sesimbra há
alguns anos.
O Joaquim Penim escreveu este livro
- que dedica a todos os seus
camaradas -, a contar a sua
experiência na Guerra Colonial, com
o objectivo de dar a conhecer aos
seus filhos, como viu e como viveu
aquela guerra. E fez bem em o
escrever. Pela guerra colonial
passaram muitos milhares de
portugueses e as experiências
vividas nessa guerra, difíceis e
traumatizantes, são factos que
convém não esquecer. O futuro
constrói-se melhor, conhecendo o
passado, e a geração da guerra
colonial tem muito a transmitir, com
o objectivo de elucidar as novas
gerações sobre o flagelo e as
consequências nefastas que uma
guerra sempre encerra.
O Penim esteve colocado, primeiro,
no aquartelamento de Nangololo e,
depois, no de Antadora, que foi
"inaugurado" pela sua Companhia,
isto em Cabo Delgado, no planalto
dos macondes. Os Macondes são um
grupo étnico bantu que vive no
sudeste da Tanzânia e no nordeste de
Moçambique, principalmente no
planalto de Mueda, tendo uma pequena
presença no Quénia.
E do que é que fala o Joaquim Penim
no seu livro? Fala dos
aquartelamentos onde esteve
colocado:
1- Nangololo - "área
delimitada por duas fiadas de arame
farpado, zona de segurança
convenientemente armadilhada por
forma a dificultar qualquer acção de
assalto ao aquartelamento. (...) Os
furriéis (eu e todos os outros)
ficaram num pavilhão de telhado de
zinco, repartindo o espaço, durante
o dia, com centenas de osgas... ),
um pequeno campo de futebol, para
sete contra sete, no máximo, fazia a
delícia de uns quantos desajeitados.
Os soldados ficaram instalados na
igreja, cujo altar era encimado por
um grande e bem esculpido Cristo, em
pau-rosa. Existiam algumas árvores
(cajueiros, mangueiras e torangeiras)
e, disseminados estrategicamente,
contavam-se alguns abrigos
subterrâneos, componente fundamental
de defesa, em caso de ataque ao
aquartelamento, que estava bem
situado, acessível ao assalto apenas
numa das quatro frentes, e onde
coexistiam sempre e em alternância
uma companhia de pára-quedistas e
outra de fuzileiros", para além da
sua companhia, da CCS (Companhia de
Comandos e Serviços) e com o pelotão
de artilharia pesada, o que dava no
total cerca de 700 homens. "Lá
dentro, sentíamo-nos seguros" - diz
o Penim.
2 - Antadora - "Aquilo que me
contaram sobre as condições de vida
e segurança naquele estacionamento,
que eu identificava agora dali de
cima, enquanto o taxi-aéreo dava
duas, três voltas, eu o imaginava
como se já o tivesse vivido e
interiorizava o medo dos ataques
diários e a vida permanente nas
valas". Ali, nem dentro do
estacionamento se sentia segurança,
onde estava apenas a sua companhia,
com cerca de 200 homens. Quando
chegou a Antadora o aquartelamento
estava "em construção". Não havia
luz eléctrica, foram construídos
dezenas de abrigos e, a pouco e
pouco, foi-se transformando um
estacionamento num verdadeiro
aquartelamento, com uma casa para o
capitão, uma secretaria, um
refeitório para os furriéis e,
ainda, uma capela. A montagem de
obuses, morteiros e peças de
artilharia transformaram Antadora
num aquartelamento mais seguro.
3 - Balama "era uma terra do
interior, mas ainda distante das
preocupações de guerra que havíamos
experimentado nos sítios
anteriores". Aí, "os soldados
demonstravam um contentamento tal
que mais parecia terem acabado a
comissão". Em Balama "tínhamos
instalações razoáveis, comíamos bem,
dispunhamos de meios de
entretenimento nas instalações do
clube local, a nível de leitura e
jogos, andávamos livremente pela
rua, mantínhamos relações cordiais
com a comunidade civil... vivendo
neste contexto, todos tirámos
partido, para o bem e para o mal".
Fala das emboscadas.
"Tínhamos dois feridos: o Damas e o
'mini-saia'. Estilhaços de granada
haviam atingido o Damas no pescoço
(soubemos depois que um dos
estilhaços tinha ficado alojado a
milímetros da carótida) , enquanto o
'mini-saia' tinha apanhado com
vários ao longo das costas e no
rabo, e o sangue borbulhava através
do camuflado". Desagradável
situação... o enfermeiro pouco ou
nada podia fazer, impondo-se sim, a
evacuação dos feridos. E, numa outra
emboscada, diz: "De repente, um
enorme trovão. A coluna pára e, ao
mesmo tempo que saltamos das
viaturas, desencadeia-se um feroz
tiroteio. Tento proteger-me a
coberto da roda traseira do Unimog,
ao mesmo tempo que procuro perceber
de que lado vêm os tiros. A reacção
é instantânea. Óptimo!vêm do lado de
lá, pelo que estou bem protegido.
Agora há que pensar nos outros. O
'Reguila', o homem do morteiro,
arrasta-se até mim e protege-se como
eu. - "Furriel, para onde atiro as
granadas?" -, pergunta-me ele.
"Atira para aquele lado. Não
inclines tanto o tubo porque a
granada tem que cair onde começa o
mato. Vá atira essa porra!"
Fala do correio.
"Ao longo deste meu desfiar de
recordações tem ficado explícito
quão importante era receber correio
na perspectiva de quem estava na
guerra, na minha, que personifica
talvez a da generalidade" e " aquele
baú, agora pintado de verde e
guardado na arrecadação, que conteve
já enxovais, fatos de noiva, fraldas
e cueiros de várias gerações, é hoje
o repositório de centenas de cartas
e aerogramas, constituindo a memória
factual de um período que marcou e
ainda marca a vida de quem o viveu".
Descreve várias operações em que
esteve envolvido, fala dos "cães de
guerra"( o 'Raio' e o 'Panzer' eram
dois pastores alemães, cães de
ataque, o outro um doberman tinha a
função de pisteiro), e do ataque a
Nangololo; nas colunas a Mueda; nas
relações nem sempre fáceis com o
Comando do Batalhão; fala das férias
que por duas vezes veio passar a
Sesimbra; e na visita do general
Kaúlza de Arriaga a Antadora
("Então, meu rapaz, diz-me lá o que
pensas disto...?); e no grande
triunfo que era toda a companhia
estar viva, apesar dos custos de
pertencer a uma companhia
independente, sem pertencer de
formação a um qualquer batalhão.
Refere-se ao desenvolvimento "das
Operações Nó Górdio", onde já tinham
sido contabilizados até então 66
mortos entre os nossos militares; e
chama a Mocímboa da Praia "a porta
do inferno, o lugar onde há vinte e
cinco meses me senti despejado" e,
depois de descrever a viagem de
regresso e a desmobilização no
quartel de Chaves, pergunta, a
finalizar:
"O que ficou?".
E responde:
"Ficaram coisas boas e más e
ficou-me sobretudo, uma visão
dantesca do mundo em que vivemos...
Ficaram estas grandes amizades... e
as sequelas de tantos anos de
guerra, as visíveis e as que o não
são. Ficaram os pais que perderam os
filhos, os filhos que não conhecem
os pais, as mulheres desamparadas e
os amigos saudosos. Ficaram os
mutilados e os cegos, os para sempre
dependentes. E ficaram ainda os
escorreitos, aqueles em que
fisicamente nada trespassa, mas em
cujo comportamento denotam
recalcamentos e alterações de humor,
inexplicáveis para terceiros. Ficou
o meu Diário sem o qual não teria
sido possível fazer esta narrativa".
E "fica também este livro,
despretencioso em termos literários,
que eu dedico a todos os meus
camaradas e com o qual pretendo dar
a conhecer aos meus filhos como vi e
vivi aquela guerra".
"No Planalto dos Macondes", livro
escrito pelo furriel Joaquim Penim,
é um excelente livro sobre a guerra
colonial. Quem por lá passou,
revê-se em muitas das situações aqui
descritas. Está de parabéns o Penim,
por ter sabido exprimir, com clareza
e realismo, o dia-a-dia de uma
guerra que marcou toda uma geração.»
(Alfredo Jorge Pinhal)