Elementos cedidos por um
colaborador do portal UTW
Luís
Quintais
(*)
"As
guerras coloniais portuguesas e a invenção da História"

título:
"As guerras coloniais portuguesas e a invenção da
História"
autor: Luís Quintais
editor: Imprensa de Ciências Sociais (colecção Estudos e
Investigações, nº 14)
1ª ed. 2000
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
167 págs (incluindo bibliografia a p.155-163)
23 cm, brochado
13.41 €
ISBN 972-671-065-0
Exemplares disponíveis para consulta pública: na
Biblioteca Municipal Central - Palácio Galveias; e na
Biblioteca-Museu República e Resistência - Cidade
Universitária
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Assuntos: Guerra colonial / História / Psiquiatria /
Psicologia / História de Portugal
Neuroses de guerra - Portugal
Stress pós-traumático - Portugal
Guerra colonial portuguesa, 1961-1974 - [Memórias]
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* Luís Fernando Gomes da Silva Quintais
nascido em 1968
Professor de Antropologia da Universidade de Coimbra
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Índice
(do
livro "As guerras coloniais portuguesas e a invenção da
História")
Outros trabalhos de Luís
Quintais:
Memória e trauma numa unidade psiquiátrica
Trama e Memória: Um Exercício Etnográfico
Medicalização da Experiência e Intencionalidade: A
aceitação de uma Nosologia como Motivo e Justificação da
História
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Texto de Luís
Almeida Vasconcelos
Fonte:
http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_08/N2/Vol_viii_N2_379-406.pdf
Recensões
LUÍS
QUINTAIS
AS
GUERRAS COLONIAIS PORTUGUESAS E A INVENÇÃO DA HISTÓRIA
Lisboa,
Imprensa de Ciências Sociais, 2000
O texto de
Luís Quintais apresenta um percurso etnográfico que se
desdobra nas sessões de psicoterapia de grupo levadas a
cabo num hospital psiquiátrico de Lisboa e numa
associação, a APOIAR, em cuja origem e actividade marcam
uma presença central ex-combatentes da guerra colonial.
O sentido do trânsito das primeiras para a última
encontra-se no facto de numas e na outra se encontrarem
homens aos quais foi diagnosticada uma “desordem de
stress
pós-traumático” (post-traumatic
stress disorder,
PTSD). Embebidas neste trânsito, as conversas e
entrevistas realizadas a terapeutas com os quais o autor
veio a trabalhar.
Como entender
o sofrimento de homens que experienciaram os horrores de
uma guerra na qual participaram e, em simultâneo, a sua
presença em sessões de terapia que têm como principal
operador uma patologia que se define, em grande medida,
a partir dessa participação? Tendo a memória, ou melhor,
a memória traumática como objecto – que faz com que,
nestas pessoas, o “horizonte de expectativa” seja
dolorosa e dramaticamente colonizado pelo “campo de
experiência” (Koselleck,
Le Futur
Passé: Contribution à la Sémantique des Temps
Historiques,
1990) –, Quintais mobiliza para uma resposta a esta
questão um fino organizador analítico: esquece-se
lembrando.
O autor sabe
que a compreensão do exercício de, ou a cumplicidade
com, práticas de crueldade não são redutíveis à
explicação das condições históricas do conflito em que
tal exercício e cumplicidade vêm a ocorrer. Mas para
aquele que é o objecto desta pesquisa, essa compreensão
torna-se duplamente problemática, na medida em que se
trata de, nos termos de uma análise que se pretende
situacional e num mesmo itinerário analítico, integrar
histórias diversas – da guerra colonial, da psiquiatria
e da psicoterapia – nas histórias destes homens
concretos. Dito de outra maneira, e tendo em conta
aquele que é o seu
locus
empírico,
o problema está em entender a marcha de um conflito
existencial por diferentes contextos, histórica e
situacionalmente distintos.
A criação da
PTSD é remetida para a história da psiquiatria
americana. É na afirmação de “que toda a experiência
mantém uma extrema porosidade à sua descrição e às
condições de possibilidade (históricas e políticas) da
sua descrição” (p. 31) que nos é dado perceber como uma
“nosologia estritamente descritiva” (p. 35) se converte
desde logo num acto de invenção: descrever é criar. A
concomitante definição de um agente etiológico como um
acontecimento fora do “espectro da experiência humana
usual”, um “stressor
traumático” (p. 40), converte-se assim num movimento que
transfere a relevância interpretativa do conflito
existencial para fora do sujeito. Dando conta da
presença de “duas figuras seminais: Emil Kraepelin
(1856-1926) e Freud” (p. 35), tudo isto nos é explicado
por entre os ecos de guerras passadas, nomeadamente a do
Vietname, e no quadro da história de uma “oposição entre
uma psiquiatria de extracção meramente descritiva” e uma
outra “de extracção psicodinâmica” (p. 35): a “tábua
nosológica” (p. 40) que constitui o DSM-III (Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders), que
contempla a criação da PTSD, aparece-nos assim como um
triunfo da primeira aproximação.
É ainda na
complexidade do processo de “protoprofissionalização das
psicoterapias” – que, a par do ecletismo terapêutico que
marca os seus elementos fundacionais e agenciais, se
tornam possíveis numa “suspensão do julgamento moral e
político dos indivíduos que procuram os seus serviços”
(p. 53) – que Quintais nos dá conta do movimento
correspondente ao estabelecimento, também em Portugal,
do diagnóstico da PTSD: “estamos
perante um
idioma cultural e social através do qual se agrega uma
pletora de sintomas numa explicação etiológica”
e “uma
modalidade de redescrição de memórias”
(p. 76, itálicos do autor).
É na excelente
etnografia das recorrentes situações do acto de lembrar
que melhor se compreende como a “‘presentificação’ da
experiência temporal dos sujeitos” (p. 83) é passível de
transformar uma odiosa experiência numa lembrança
mitigada: “As sessões de psicoterapia eram
espaços
abertos à constituição de sentido”
(p. 89, itálicos do autor). Deste ponto de vista, é
magnífica a forma como o autor desdobra a metáfora “da
ferida ou do abcesso que é preciso lancetar” – ‘esse
«segredo patogénico’” (p. 84) – num processo no qual são
atribuídos à memória destes excombatentes os pormenores
decorrentes do visionamento de um filme, isto é, no qual
as imagens em movimento são convertidas numa espécie de
vividez com efeitos retroactivos. Ora é precisamente nas
experiências que compõem esse vívido movimento de
repetição que o inumano é humanizado, ou seja, que vai
sendo produzida uma transformação nas “condições a
partir das quais o julgamento moral é realizado”: na
guerra, os pacientes habituaram-se “a viver subjugados
por mecanismos neuro-fisiológicos de sobrevivência
adaptativa que se localizariam ‘para lá do centro
racional da mente’” (p. 98). É no recurso ao legado
teórico de Victor Turner que o autor propõe que as
histórias destes excombatentes – marcadas pelas
“implicações traumáticas (metamorfoseadoras) da guerra”
– sejam enquadradas “nosologicamente pela psiquiatria
que emerge da 3ª edição [do DSM-III], publicado em
1980”. Ou seja, que as “passagens”
correspondentes “às experiências das guerras coloniais
portuguesas, que estilhaçam a suposta continuidade de
uma vida, ameaçando-a de dissolução” (p. 105) e o
processo terapêutico posterior sejam tratados como
fazendo parte das profundas transformações operadas num
mesmo campo de experiência. Mais uma vez, é sobre uma
excelente etnografia que se interpreta o processo
através do qual – apoiados num passado medicalizado e na
“eficácia […] das utensilagens narrativas e metafóricas
com as quais se molda o conhecimento social legítimo” –
“[e]stes homens da ombreira”, que
“vivem uma espécie de
invisibilidade estrutural”,
vão abandonando a sua “posição periférica” e como esta
invisibilidade “começa
a desvanecer-se”,
evoluindo progressivamente “para um estado de maior
nitidez e visibilidade classificatória” (p. 117,
itálicos do autor).
Como numa
clepsidra, ou melhor, como no movimento já descendente
da sua areia, o texto remete-nos para os efeitos do
referido processo de moldagem: a APOIAR. O argumento
mostra-nos esta associação como um dos lugares onde as
vicissitudes dos homens que lutam pela visibilidade – é
uma verdadeira militância que a etnografia desta
associação nos revela – se apoiam agora no resultado das
tensões em que tal visibilidade veio a tornar-se
possível: a emergência e a consolidação terapêutica da
PTSD. E assim – agora para fora deste círculo
terapêutico, e num movimento que vai construindo um
maior consenso em torno da legitimidade daquela
nosologia – fornecem estes ex-combatentes elementos para
a constituição de uma narrativa que se pretende
constituinte de uma memória colectiva.
Mais que um
conciliador de escalas, este texto constitui uma
excelente reflexão sobre a construção dos trânsitos
entre escalas diferenciadas. Estando o autor a reflectir
sobre um processo de construção de metanarrativas, nunca
somos abandonados num patamar analítico que não tenha
como primeiro referencial a experiência humana. Para
além desta qualidade intrínseca, e no que é também
característico das boas etnografias, o texto fornece
ainda vários elementos para uma discussão mais alargada.
Desde logo a forma como Quintais evita que o “potencial
de humanidade”, que Turner faz decorrer da posição no
limen
ou
marge,
seja, em virtude de qualquer deslizamento semântico,
transformado em algo que só o é parcialmente.
Enquanto
domínio de pura possibilidade, somos lembrados que o
conceito é passível de incluir também o que Colin
Turnbull designou como um “potencial para a
desumanidade” (The
Mountain People,
1987 [1972]: 12). Paradoxalmente, é no que esta
constatação tem de mais perturbador – e no que nela a
transposição de um limite de ordem moral se vem a
transformar numa espécie de ricochete existencial – que
somos empurrados a questionar os limites do
etnocentrismo: apesar de um contexto histórico em que a
perfídia atribuída a um inimigo é passível de legitimar
a participação numa guerra, ou seja, de a cobrir
ideologicamente, alguns daqueles que nela participam
experimentam nos homens que cruelmente destroem uma
humanidade que lhes é comum.
Esta situação
também vem a colocar-nos um terrível dilema. É a
compaixão para com estes homens que nos torna sensíveis
ao seu sofrimento e, portanto, como eles, apostados em
seguir um argumento que nos conduz, aliviados dir-se-ia,
a uma terapêutica – o autor insiste no facto de a
metamorfose ser irreversível – com contornos paliativos.
Em simultâneo, somos confrontados com o facto de, neste
movimento de sanitarização de um conflito moral, se
correr o risco de produzir o esquecimento histórico que
torna possível a reiteração do horror.
Do nosso ponto
de vista, são obras com esta intensidade dramática – até
pelos recursos retóricos usados Quintais nos obriga a
pensar sempre nos limites – que nos permitem compreender
os homens sem que, apesar de tudo, se esqueça o que de
mais horrível eles podem fazer.
Luís
Almeida Vasconcelos
Centro de
Estudos de Antropologia Social