Organizado por António Machado, antigo
combatente farense na Guerra Colonial,
apoiado pela Câmara Municipal de Faro e o ALGARVEPRESS como jornal oficial do evento,
realizou-se em Faro, no armazém do Moto
Clube de Faro, junto ao Aeroporto
Internacional da capital algarvia, no dia
nove deste mês, o IX almoço Convívio do
Batalhão de Cavalaria 1927.
A comissão organizadora, composta por um
grupo de algarvios, ex-combatentes da Guerra
Colonial, que prestaram serviço militar em
Angola, cumpriu, assim, um antigo desejo de
concretizar um encontro na nossa Região após
o lançamento do livro “Elefante DunDum”.
Apesar do pesar pelo falecimento, poucos
dias antes do encontro, do major Mendes
Paulo, autor do livro e do CD, e antigo
comandante do Batalhão 1927, várias dezenas
de antigos combatentes no então Ultramar
Português juntaram-se com familiares e
amigos e puderam conviver com um dos filhos
do homenageado, Tiago Mendes Paulo, que de
lágrimas nos olhos recordou “o grande pai,
amigo, militar e condutor de homens”.
Na ocasião coube ao coronel Cabedo, num
clima de grande emoção, ler a mensagem de
Nuno Mendes Paulo, outro dos filhos do
major, que muito ajudou na montagem das
imagens no cd, com especial destaque para os
nomes das guarnições dos M5A1 (mais de
metade algarvios) – Machado, Vítor, Bento,
alferes Saraiva, Chã de Almeida, Dias, Gago,
Pouca Roupa, Bagarrão Vieira, Palma, Silva
Correia, Aires, Leite Ferreira e Ribeiro.
O “cheiro” do Algarve e a “Alma Algarvia”
estiveram igualmente presentes na festa com
a actuação do Grupo Folclórico dos Amigos do
Montenegro, um dos que ainda não se
comercializou e mantém bem vivas as
tradições dos cantares, bailinhos e
corridinhos algarvios.
Do programa, três dias antes do grande
encontro, fez ainda parte a habitual
reunião/jantar quinzenal da “Confraria dos
Cavalheiros da Tábua Quadrada”, onde o
coronel Cabedo, nas respostas às habituais
perguntas dos “confrades”, acrescentou ao
livro mais umas quantas histórias, que por
serem verídicas fazem igualmente parte da
história da Guerra Colonial Portuguesa.
A entrevista à “Confraria” do coronel Cabedo,
e o livro e o CD do major Mendes Paulo,
constituem um grande contributo, destinado a
todas as gerações, para uma melhor
compreensão (até aprendizagem) de muitos
factos, directa e indirectamente ligados à
Guerra Colonial.
É com prazer que estou na “Confraria dos
Cavalheiros da Távola Quadrada”. É preciso
que haja um grupo de pessoas heterogéneo
como este, composto por ex-militares e
pessoas das mais diversas áreas da sociedade
civil, gente que se conhece, amigos que
resolvem, de 15 em 15 dias, juntar-se para
impressões e ouvir convidados de forma
aberta.
Estou aqui em substituição de um grande
amigo, o Major João Luíz Mendes Paulo, que
ficamos a saber que hoje de manhã iniciou a
sua longa viagem. Mas concretizou um sonho
de toda a vida, que era conseguir transmitir
ao País, e eventualmente ao Mundo, que o
nosso soldado, o soldado português, é o
melhor soldado do Mundo. Isso ficou provado
nuns relatórios que um major das Forças
Armadas Americanas, ex-combatente na guerra
da Coreia, do Vietname e depois na do Golfo,
veio dizer que nunca viu uma tropa em
combate como a nossa, mas principalmente o
que o impressionou foi o nosso serviço de
saúde. Ele disse que nunca imaginou que era
possível um país tão pequeno estar em 3
frentes de guerra ao mesmo tempo, começou
por salientar o coronel Cabedo e
Vasconcelos.
Onde é que a guerra era mais forte?
Na Guiné a guerra era muito forte, eu não
estive lá, estive na Índia, em Moçambique e
Angola duas vezes. Mas ele (o Major) esteve
lá e viu que o serviço de saúde era
absolutamente extraordinário. Nos
conseguíamos evacuar o pessoal e tratar
daquilo tudo.
Mendes Paulo escreveu um livro (Elefante
DunDum) em que falava exactamente disso, nós
demos uma lição ao mundo da maneira como
funcionámos nas ex-províncias ultramarinas.
O nosso soldado com o seu espírito de
coragem, abnegação, sacrifício e humildade
extraordinária.
Eles nada pedem, nada querem, a não ser que
o país reconheça o seu esforço
extraordinário, sobre-humano, que eles
desenvolveram enquanto estiveram em
campanha.
Mas aqueles territórios não eram nossos.
Ainda defende a antiga Constituição?
Alguns daqui estiveram em Angola, outros na
Guiné e na Índia. Já não temos o Império que
tínhamos, mas não é por culpa deles, que
tudo fizeram para manter as fronteiras do
país. Na altura não tínhamos outra hipótese
que defender a Constituição em vigor. Para
quem leu a Constituição Portuguesa de 1933,
diz lá no 1º artigo qual era a dimensão do
nosso território – Portugal é constituído
pelos seguintes territórios, Açores, Angola,
Moçambique, etc. – e depois diz a mesma
Constituição no artigo 134 ou 135, que eram
as províncias ultramarinas solidárias com a
metrópole.
Eu li há tempos uma frase de uma figura
mítica do cinema americano, depois daqueles
filmes diabólicos do Rambo: “Só quero uma
coisa, que o meu país goste tanto de nós
como nós gostamos dele.”.
“O soldado português é o melhor do mundo”
O Soldado português não foi ainda bem
reconhecido?
Alguns foram louvados, condecorados e outros
infelizmente não voltaram. Este livro que o
Major Mendes Paulo escreveu é um preito de
homenagem a todos os que estiveram, mas
também àqueles que infelizmente não
voltaram.
Somos militares e às vezes esquecemos que a
parte civil também nos acompanha, não é que
sejamos menos humanos, mas a vida militar
absorve-nos.
A mulher e mãe portuguesa também está
esquecida?
A mulher portuguesa foi fundamental em toda
a guerra, nós que estávamos em combate
tínhamos os pais, as mulheres, alguns já
tinham filhos, mas hoje em dia é necessário
transmitir o que fizemos. Infelizmente há
quem diz que estivemos lá de férias, a
prolongar as comissões porque assim íamos
ganhando mais uns dinheirinhos. Mentira
completa! Se lerem o livro que Mendes Paulo
escreveu ficam completamente elucidados.
Para mim foram quatro comissões, para o
Mendes Paulo também, só que na terceira ele
foi para a Guiné e eu fui para Angola.
Voltando às nossas mulheres, à mulher
portuguesa. Ela aguentou tudo, ela ia-se
despedir dos maridos e filhos, incitava-os a
cumprir o seu dever para com a Pátria, só
pedia a Deus que eles voltassem,
infelizmente nem todos voltaram, não com a
percentagem que hoje em dia querem dizer.
Mas quando chegávamos e tínhamos as famílias
todas à espera, como à partida, era uma
sensação extraordinária. Quando chegávamos
parecia que há poucos dias tínhamos partido.
Elas sempre nos receberam. Com aquilo que
diziam, com aquilo que escreviam nos
aerogramas. Era terrível quando os militares
iam aos microfones e diziam “adeus e até ao
meu regresso”, era uma frase que ficava
porque não nos deixavam falar mais – “tem
dois minutos”, “tem um minuto”, “tem quinze
segundos para falar”, “então adeus e até ao
meu regresso” - e aquilo saía.
A minha homenagem é principalmente a este
homem que escreveu este livro, João Luiz
Laia Nogueira Mendes Paulo, aos militares
portugueses, e à mulher portuguesa.
A acção do M5A1 em Angola foi uma inovação
para o tempo?
O Major Mendes Paulo conseguiu equipas de
militares que nada sabiam de carros de
combate e levaram três carros para Angola,
os únicos carros de combate que entraram na
guerra por Portugal e que fizeram por lá um
sucesso extraordinário. Quando entravam os
carros a acção do inimigo abrandava e as
colunas seguiam sem qualquer incidente pelo
caminho.
Ele escreveu este livro e, com a ajuda dos
filhos, fez o DVD com imagens filmadas por
sí e, às vezes, quando ele estava à frente
das tropas, era a Ju, sua mulher, que
filmava, ou quando a companheira não podia
lá ia mais alguém filmar.
Perdemos um grande homem...um bom militar,
todos aqueles que privaram com ele
reconhecem a sua classe, a sua craveira
intelectual e a sua capacidade de liderança,
que conseguia aglutinar todos.
“GINA – LICAS E MILOCAS” - ADEUS ATÉ AO
NOSSO REGRESSO...
O que era o M5A1?
Estes três M5AI, alcunhados pelas guarnições
com os nomes de “Gina”, “Licas” e “Milocas”,
usados em Angola, foram os únicos carros de
combate nos teatros de operações no
Ultramar, como carro de combate de lagartas,
integrados no batalhão 1927, que o Mendes
Paulo conseguiu recuperar. Estavam na sucata
e continuam lá outros. Têm dois motores
Cadillac, muito boa mecânica e são fáceis de
conduzir.
Há quem diga que ele os comprou para poder
levá-los, eu não lhe perguntei se ele os
comprou, nem ele me ia dizer, mas o que é
certo é que com tantas resistências que o
Estado-maior do Exército lhe impôs e que ele
ia sempre superando.
Umas vezes diziam-lhe que “não há munições
para isto”, ele ia vasculhar as arrecadações
e encontrava umas 500 mil munições que eles
nem sabiam que existiam, outras vezes diziam
- “não há motores”, mas ele descobriu 400
motores cadillac novinhos em folha, ainda
com o adesivo à volta. Até conseguiu
lagartas completas e motores a funcionar.
Quanto tempo é que o coronel lá esteve
com o 1927?
Eu estive em varias comissões mas com este
batalhão 1927 foram dois anos, depois o
batalhão rendeu…aí, não só já não tinham as
guarnições preparadas pelo Major Mendes
Paulo, nem ele estava lá, de maneira que os
carros já ficaram meio avariados, um deles
não pegava resolveram deitar gasolina no
carburador e obviamente o carro incendiou-se
e nunca mais funcionou.
Este livro segue alguma tendência política?
Quem tiver a oportunidade de ler o livro vai
saber que o major Mendes Paulo nunca foi
político na vida, o livro nada tem de
política, é única e exclusivamente o seu
percurso militar e de quem esteve com ele.
Conhecemo-nos desde a Escola do Exército e
nunca tivemos nada a ver com a política.
Só pode dizer isso quem não leu a
Constituição de 1933, em que as fronteiras
de Portugal eram aquelas, nós defendíamos
aquelas fronteiras lá ou aqui ou noutro
sítio qualquer, desde que fossem nossas.
Portanto, verá de certeza que nada tem que
ver com politica, quer seja antes ou depois
do 25 de Abril de 74. Mendes Paulo dedicou
toda a sua vida à questão militar.
O intuito deste livro é mostrar ao país e
quiçá ao mundo o nosso soldado, esse foi o
sonho dele, que foi cumprido. Este livro é
apoiado pela Comissão Portuguesa de Historia
Militar, que é um organismo que se dedica à
parte histórica, por isso eu comecei por
dizer que este livro é um documento
histórico de altíssimo valor.
Que comentário faz ao que se passou na então
Índia Portuguesa?
Eu estive na índia, o Major Mendes Paulo
também, quem lá estava não podia fazer mais
nada. Não sejamos mentecaptos e pensar que
meia dúzia de gatos pingados podiam fazer
frente à União Indiana, ainda para mais mal
armados em relação a eles. Nós estávamos lá
para honrar o nosso país, para fazer o que
fosse possível e para eles verem que nós não
íamos embora assim que eles aparecessem.
Os nossos vasos de guerra lá estiveram. O
meu irmão era oficial de Marinha em comando,
depois rendido por Oliveira e Castro, que
acabou morto a bordo da lancha. Quem lá
ficou não podia fazer mais nada, tínhamos
era que esperar que o poder político de cá
resolvesse o problema. As minhas homenagens
a quem lá esteve e a quem lá ficou, não
foram fáceis esses dias.
Muito se falou então na ajuda que os mísseis
proibidos pela NATO e pelos Estados Unidos
poderiam ter dado na mudança do rumo da
guerra.
Quando se fala em colónias recordo que na
Constituição de 1933 não há colónias, os
territórios eram províncias ultramarinas.
Quanto aos mísseis, o problema que havia com
os Estados Unidos era, nós éramos apoiados
pelos EUA no âmbito da NATO, ora, não
podíamos levar os carros para a Guiné, foram
para Angola porque eles estavam distraídos.
O Major Mendes Paulo apanhou-os distraídos,
disse que eram uma sucata, não serviam para
nada e entretanto ia mexendo uns
cordelinhos. Quando eles viram que os carros
foram para Angola, fora do âmbito da NATO,
porque eles não queriam que instrumentos
militares e armamento da NATO fossem para as
províncias ultramarinas.
Mesmo que nós tivéssemos recebido mísseis
dos americanos nunca iriam parar às nossas
províncias ultramarinas, como nunca foram
parar à Guiné. Nós levávamos com os mísseis
do PAIGC. Os nossos aviões levaram alguns e
foram abatidos com os mísseis que eles
tinham, pois tinham armamento mais potente
que o nosso. Eles tinham morteiros 121, nós
tínhamos morteiros de 80 e de 60.
Na sua quarta comissão de serviço, Mendes
Paulo foi nomeado para oficial de Operações
do Batalhão da Guiné, o General Spínola
sabia do que se tinha passado em Angola e
mandou-o a Lisboa ir buscar os carros porque
lá faziam muita falta, e ele foi. Na
Metrópole responderam-lhe: “Não, agora não
nos apanha distraídos, isto é da NATO e os
americanos não deixam que os carros vão para
o Ultramar”.
Então tiveram que ir as chaimites mal
preparadas, a partirem os semi-eixos a torto
e a direito, as metralhadoras encravavam, as
HK21 não funcionavam nem à pedrada, mas
Mendes Paulo, com a ajuda dos seus
mecânicos, conseguiu que as chaimites fossem
uns blindados bem aproveitados na Guiné,
porque destes de lagarta não conseguiu
levar. Nunca mais foram.
Em Angola e Moçambique a situação era melhor
que na Guiné?
Em Angola a coisa não estava como na Guiné.
Em Moçambique era à base de minas, nós
conseguimos lá neutralizar algumas e foi um
sucesso. Em Moçambique não tínhamos
helicópteros, só aviões paras nos apoiar,
com uma capacidade reduzida de combustível.
Os feridos que tivemos eram evacuados se os
aviões quisessem vir e aterrar na picada,
aterraram dois aviões, um BO, e um Austin,
mas este meteu um pau no leme de
profundidade, não conseguiu tomar altura,
demorou meia hora a tomar altura e quando
conseguiram comunicaram-nos que enquanto
fosse para aterrar na picada não vinham
mais.
Pista de aviação construída a pá e picareta
Como se resolviam essas situações?
Para resolver o problema construímos uma
pista de aviação à pá e à picareta. Não é
propriamente passar férias, como
infelizmente ouvimos dizer. Quando estava
pronta comunicamos para Vila Cabral e vieram
dois aviões Dornier.
É bom que as gerações mais novas saibam o
que nós mais velhos andámos a fazer por lá,
não fizemos mais porque era impossível, mas
é bom que eles saibam que nós não andamos a
passear e que se orgulhem daquilo que o
Exército, Força Aérea e a Marinha fez
enquanto lá esteve.
Afinal, quem foi Mendes Paulo?
Ainda bem que fez essa pergunta: O Major
Mendes Paulo e eu conhecemo-nos desde que eu
entrei para a Escola do Exército, ele era um
ano mais antigo, depois cada um foi para seu
lado. Encontrámo-nos na Índia, depois fomos
para Moçambique, era a segunda vez que nos
encontrava-mos.
Fomos à terceira comissão para Angola, no
mesmo Batalhão, e só na quarta comissão é
que ele foi para a Guiné e eu para Angola,
portanto, fizemos um percurso próximo e
dedicado à vida militar.
O Major Mendes Paulo foi o 2º classificado
do curso de Cavalaria Militar, o 1º é o
General António Gonçalves Ribeiro. Sempre
foi um estudioso, amante da mecânica, da
táctica e da estratégia militar, mas não era
aquele guerreiro que mata tudo o que lhe
aparece à frente. Ele era uma pessoa de uma
craveira intelectual extraordinária, com
grande cultura, mas ao mesmo tempo dum
humanismo a toda a prova.
Eu estive com ele dois dias antes da sua
morte, devo ter sido a única pessoa da
família que fui autorizado a ir ao quarto
dele no hospital e ele disse “se eu não
puder ir ao Algarve, porque os médicos não
me deixam guiar, gostava que tu fosses
porque é preciso fazer ver a toda a gente
que os nosso soldados, sem pedirem nada a
ninguém, porque não pedem nada, deram tudo o
que lhes pediram e ainda não foram
reconhecidos.
Até hoje não se fez uma homenagem aos nossos
soldados, eles foram para lá com 20 anos, eu
já tinha 32 ou 35, eram novinhos, foram lá
sem saber como é que era, até lhes chamavam
os maçaricos, na Guiné eram os periquitos, e
quando saíram de lá já vinham homens
preparadíssimos para enfrentar a vida.
M5AI O Carro de Salgueiro Maia
Afinal qual era o papel do Major Mendes
Paulo nesta história toda?
Desde o tempo da Escola do Exército, onde
era instrutor dos cadetes de uma Escola de
Formação de Oficiais, ele estudava mecânica,
entrava em ralis e preparava o carro. Em
qualquer lado onde estivesse comprava um
carro, mais umas velas e um carburador,
portanto era um indivíduo dedicado. De tal
modo que se dedicou ao estudo destes M5A1
que eram uns carros que na altura estavam
para instrução de cadetes. No livro e no CD
vemos os cadetes Estêvão Ferreira de
Carvalho, que infelizmente morreu na minha
companhia, o Salgueiro Maia que é do mesmo
curso, já que Mendes Paulo foi professor de
prática de Cavalaria na Escola do Exército.
Ele estudava, tinha comunicações com todos
os países do Mundo que tinham o M5A1, que
lhe escreviam e vinha a Portugal descobrir
onde estão os carros. Era um condutor de
homens.
Este carro de combate, com a blindagem que
tem, foi um sucesso, aliás, pode-se
comprovar pelo índice de ataques às colunas
que diminuiu drasticamente. Já depois de ter
passado à reserva foi à Índia com a mulher
visitar os locais todos onde esteve e onde
tinha nascido o primeiro filho, foi lá e aí
continuava a ver a parte humana dele porque
toda aquela gente de Valpoy ainda o
conhecia, pois desenvolveu uma actividade
humana extraordinária em todo o lado onde
esteve.
“As nossas experiências de guerra não têm
sido aproveitadas”
O livro e o DVD constituem um verdadeiro
contributo para a história da nossa Guerra
Colonial?
Ainda bem que apareceu um homem como ele a
escrever estas coisas.
Há uns tempos morreu um sargento na Bósnia.
Eu vi a fotografia do carro, tinha uma
blindagem fraca. Nós quando estivemos em
Moçambique e em Angola tentávamos proteger o
nosso pessoal com sacos de areia para
acachapar uma explosão de uma mina, sacos de
areia por baixo do guarda-lamas, sacos de
areia por baixo do assento do condutor,
enfim, a viatura ficava mais pesada mas a
explosão era acachapada pelo material.
Eu encontrei um capitão do Exército que me
disse: “Àh, isso é fino, tudo fora”, claro
que levou com uma mina e já vai em 50 e tal
operações a uma perna e ainda hoje anda em
hospitais.
Então e os nossos ensinamentos, a nossa
experiência lá fora não servira para exemplo
de ninguém? Tenho pena disso. Tenho pena que
os nossos ensinamentos não estejam a colher
frutos nas nossas participações militares
internacionais.
Os Políticos têm esquecido os
ex-combatentes?
O que é o 10 de Junho? É o encontro dos
ex-combatentes, que não convém a ninguém, a
não ser a nós que andamos a combater, para
nos encontrarmos uns com os outros. Algum
membro do Governo está lá? Eu não vi lá
nenhum. Não lhes interessa estarem lá, fomos
nós que andamos lá fora, a eles não lhes
interessa nada.
Nós gostaríamos um dia que os nossos
militares fossem reconhecidos, e era isso
que o major Mendes Paulo disse, com lágrimas
nos olhos, os nossos militares deram tudo e
não pediram nada, a não ser o reconhecimento
do país. O primeiro documento que aparece, a
sério, a falar do que se passou é este livro
e este filme.
Com a independência como é que ficaram as
ex-províncias ultramarinas?
Aquilo é assim, nós formamos na Guiné grupos
de naturais da Guiné, bons combatentes, que
queriam pertencer às nossas forças armadas.
Quando se tornaram independentes foram todos
fuzilados. A situação na Guiné depois de
sairmos de lá creio que não melhorou muito.
Em Angola praticamente não tínhamos problema
porque quando chegou a revolução de 1974
estava praticamente ganha a guerra porque os
nossos adversários já não tinham poderio
militar que nos impedisse de fazermos o que
quiséssemos em qualquer sítio em Angola.
Moçambique tem dois movimentos políticos, a
FRELIMO e a RENAMO, a FRELIMO sempre se
bateu para ter supremacia sob a RENAMO, no
entanto, é das 3 frentes de combate aquela
que melhor se está a portar na nossa
ausência, porque está a levar a sério o
apoio internacional que está a ser dado ao
Governo de Moçambique. Goa também se manteve
bem, os hotéis estão restaurados.
Depois da Revolução, em Angola, onde se
construía um prédio por dia, as pessoas que
lá ficaram apoderaram-se das motos, dos
carros, depois aquilo entrou em assaltos
permanentes, a criação já não se fazia, nem
de galinhas, nem de porcos, nem de nada.
Quando se perguntava o que é que eles
andavam a fazer eles respondiam “Tou no
esquema”, e o que é o esquema? “Estar no
esquema é hoje estar aqui amanhã ali”.
E em Moçambique?
Eu escrevi, se em Moçambique tivéssemos
blindados ali na zona do Niassa, uma zona
árida que é mais ou menos plana, aí os
carros de combate tinham tido uma utilidade
fantástica e tínhamos conseguido superar
aquilo mais rapidamente.
Mas era o que tínhamos. Helicópteros não
tínhamos, aviões eram esses T-6 de apoio ao
solo, comandados pelo Tenente Carrilho, mais
tarde General, um tipo fora de série.
Ainda sobre a história da Pista construída a
pá e pica. Em Moçambique a minha companhia
fez uma operação com paraquedistas,
fuzileiros e comandos no Norte do Niassa, a
dada altura um paraquedista pisou uma mina e
desfez o pé. Pedimos apoio aéreo, estávamos
no meio do mato, não havia nada onde pudesse
aterrar um avião, então, a minha companhia
(75 homens) levava sempre no cinto uma
catana, pedi aos paraquedistas que
segurassem o campo enquanto o meu pessoal
todo foi desbravar os montes de mandioca,
duros que nem pedra. Chegou o Carrilho com
um Dornier, deu a volta por cima e eu
disse-lhe: “Isto é a única possibilidade”,
ele olhou, deu a volta e aceitou aterrar.
Devo dizer que é imensa a emoção de ver
aterrar um avião num terreno que não tem a
mínima qualidade para aterrar, vê-lo a
descer a abanar a asa, com a cauda em baixo
e o motor a roncar.
Embarcou-se o paraquedista e eu disse ao
Carrilho: “então e agora para levantar?”,
“Olhe lá ó Cabedo, eu se aterrei também
levanto, mete-me a cauda dentro das árvores
e eu já te digo como é que é!”, lá foi o
pessoal todo empurrar o avião, ele acelera o
motor de tal maneira que eu pensei que
aquela porcaria saltasse toda fora… Arrancou
e em meia dúzia de metros o avião levantou
na vertical.
Diz-se que um homem não chora, é mentira, as
lágrimas correram-me pela cara abaixo.
Tentámos salvar a vida do paraquedista, Deus
queira que ele tenha sobrevivido, porque
saiu dali nas mãos do Carrilho e nas mãos de
Deus.
Acredita em todas as histórias dos
Pós-traumáticos?
De facto são situações que eu devo dizer
que, francamente, algumas delas eu não
acredito, e digo-lhe porquê. Num batalhão
onde eu pertencia alguns militares
fizeram-se de malucos, então andavam a
passear nus no meio da parada, sentavam-se
no chão a remar, queriam ir para Lisboa. O
que é que havia a fazer, mandá-los para o
Hospital de Luanda. É evidente que isto não
se passa assim. Ao fim destes anos aparecem
alguns pós-traumáticos.
Tenho um furriel que foi para os comandos e
quando voltou já vinha meio patareco,
transtornado. A cabeça dele já não
funcionava como quando se ofereceu para os
comandos. Aí no seu regresso à companhia
dei-lhe umas acções mais simples. Passados
estes anos todos (1963), ainda hoje o
processo dele está a correr, a mulher já se
separou dele porque não está para o aturar,
ele não tem dinheiro, não articula as frases
direito. Isto é para chegar aonde? É que
muitos dos nossos organismos são muito
responsáveis por esses pós-traumáticos.
Porque além de demorarem muito tempo a
resolver os problemas não se interessam o
suficiente para saber onde é que eles
tiveram, o que é que fizeram e o que é que
sofreram.
Uma coisa é uma pessoa estar no
Quartel-general em Luanda e vir para Lisboa
dizer que está a sofrer do pós-traumático,
ele que vá passear e não venha cá dizer
essa. Se um soldado meu que esteve em Nova
Coimbra à chapada, que esteve num carro de
combate, que sofreu uma emboscado onde
morreram dois oficiais e um soldado, disser
que está ainda a sofrer, aí eu acredito,
agora é preciso ver quem é que está a sofrer
síndroma pós-traumático, nem tudo é verdade.
A culpa de isso ainda não estar resolvido é
dos serviços de saúde porque o processo anda
sempre de um lado para o outro à espera de
um despacho.
“As guerras e interesses pessoais e
partidários estragaram o 25 de Abril”
Portugal estava melhor com ou sem o 25 de
Abril?
A seguir ao 25 de Abril começaram as guerras
intestinas, cada um queria a sua guerrinha à
sua maneira. Daí resultaram as desconfianças
de uns para os outros e a desconfiança era
tal que se chegou ao 11 de Março, que nunca
ninguém percebeu o que foi, e no qual eu fui
preso.
Eu fui preso porquê? Nunca quis saber de
política, nem percebo de política, não aderi
a movimento nenhum, não estive nas Caldas,
mas a verdade é que fui preso, fui parar à
Trafaria e depois para Caxias. Ao fim de 17
dias mandaram-me embora, disseram-me que
tinha estado preso por ser suspeito de
pertencer a uma associação de malfeitores.
Quando se começam a dar estas guerras, em
que nós vemos que toda a gente quer chegar
ao poleiro, estragaram o 25 de Abril, a
essência do 25 de Abril era manter o país
democrático, transferir o poder militar para
a sociedade civil para, com cabeça e com
noções firmes de democracia, pôr o país
direito. Só que, também tenho que dizer que
o nosso pessoal tinha muito fracas noções de
democracia porque tinham pouca prática de
lidar com democracia.
Era muito difícil ser democrata há uns anos
atrás, mas se não tivessem havido as guerras
de cada um para chegar ao poleiro tudo tinha
corrido bem. Essas guerras ainda continuam,
os partidos andam sempre em guerra. Podíamos
ter hoje um país maravilhoso,
simpatiquíssimo, mais democrático, mas
infelizmente não é nada.
“ A ideia do 25 de Abril foi boa mas as
consequências desastrosas”
E sem o 25 de Abril?
Não seríamos nada, porque de facto era
necessário sermos democratas, ter uma
democracia em Portugal. Se continuaríamos
melhor como estávamos? Duvido que
estivéssemos porque já não estaríamos a ser
apoiados por ninguém. Éramos escorraçados
com toda a certeza de todos os lados.
Tentámos ser democráticos, só que falhou a
nossa prática de democracia.
Mas um dia isto estará mais estável, pelo
menos espero que assim seja, até para depois
podermos dar os parabéns a quem fez o 25 de
Abril, porque se a ideia foi boa, o que daí
adveio é que foi uma consequência
desastrosa.
“A entrega das ex-colónias foi precipitada e
feita por azelhas”
P -Defende a manutenção dos princípios da
Constituição de 1933?
Naquela altura estávamos a ser geridos por
essa Constituição. Nós, como militares, o
que é que nos compete? Defender o país. O
que é que era o país? Lá dizia que Portugal
era constituído por vários territórios.
Tanto o Algarve como a Guiné ou Angola,
naquela altura, eram partes integrantes do
nosso país, compete ao exército e às forças
armadas defender o seu país. Se concordo ou
não com a manutenção das províncias
ultramarinas ou com a independência? Como
nós sabemos, esta entrega precipitada, e
digo com consciência daquilo que estou a
dizer, feita por meia dúzia de azelhas com
muito poucos conhecimentos de política,
deram cabo da entrega das províncias
ultramarinas.
Eu ouvi um senhor, que era um ilustre
professor que chegou cá e interrogado acerca
da situação disse: “Entreguem já aos
movimentos de libertação”. E devo dizer que
por muita consideração que tenha pela
intelectualidade desse senhor, isso que ele
disse é um erro. Porque se naquela altura se
entregasse o poder imediatamente aos
movimentos de libertação nenhum dos que lá
estava voltaria, eram todos fuzilados.
Quando depois se fizeram os Acordos de Alvor
e outros que tais, para se entregarem os
territórios, porque é que não se lembraram
como é que a Inglaterra fez a entrega dos
seus territórios? Eu não gosto dos ingleses,
são arrogantes e petulantes, mas a verdade é
que eles souberam integrar os antigos
territórios como a África do Sul, ou a
Índia, etc., na Commonwealth. E nós o que
fizemos? Nada, absolutamente nada, eles
fazem comércio com quem querem, com a China,
com a Rússia ou Inglaterra, menos connosco.
Quem fez esses acordos devia-se ter
assegurado em primeiro lugar em entregar,
mas não podemos esquecer os 500 anos que lá
passamos, ainda se hoje se pode ver o que lá
fizemos. Os contactos foram mal feitos
porque ninguém pensou que nós podíamos
usufruir da nossa entrega dos territórios,
beneficiando daquilo que eles têm para nos
dar, para nos vender e nós para comprar. E
agora vamos apanhar o comboio, depois destes
anos todos? Eu acho que nem o Vagão J
apanhamos porque já está tudo fora de
controlo.
É a favor do apoio às antigas províncias?
Quem quer dar o apoio é o pessoal de cá, que
está muito receoso por causa das crianças?
Será que foram eles que pediram o apoio? Eu
gosto muito das crianças, agora, se eles não
nos pedem ajuda, será que nós temos que ser
subservientes? Correram-nos de lá à batatada
com mísseis e tudo o que havia, e nós
saímos, mal ou bem tivemos que sair, e agora
eles não nos pedem apoio, nós de cá é que
queremos mandar ajuda para lá, e isso acho
que é subserviência.
Olhando para trás, acha que a guerra podia
ser ganha?
Eu acho que sim. Onde é que eram as zonas de
combate? Claro que na Guiné era mais difícil
porque mais ou menos todo o território
andava envolvido. Mas em Angola estava
absolutamente definido, não havia problema
nenhum, o território de Angola, 14 vezes
maior do que Portugal, tinha as guerras lá
em cima, o resto estava tudo bem, não havia
problema nenhum grave. Em Moçambique melhor
ainda, o único sítio onde estava mal era nos
Macondes, que eram um povo de guerreiros por
natureza, o resto, no Niassa, onde eu estive
durante dois anos, não tinha expressão,
tinham era muitas minas.
O 25 de Abril devia ter sido mais cedo?
Devia, nós demos 13 anos ao poder político
para resolver o problema, eles não fizeram
nada. Então nessa altura os militares
decidiram, vamo-nos envolver e resolver a
situação. Aí já os políticos apareceram e os
desertores também que bem os conheço. Não
venham cá com as convicções políticas, um
militar que anos atrás abraçou a carreira
das armas voluntariamente e depois não quis
ir para lá, porque aquilo lá não era
propriamente andar a passear no Chiado.
Ainda para mais se tivesse saído das forças
armadas e integrado um partido político.