"Os Resistentes
de Nhala: 1969-1971"
"Os
Resistentes de Nhala: 1969-1971"
autor: Manel Mesquita
editor: Manuel da Costa Mesquita
tipografia: Quadra - Produções Gráficas
1ªed. 2005 (300 exemplares)
144 págs (ilustrado)
PREÂMBULO,
escrito pelo autor
(excertos):
«"Poucos Quanto Fortes" era a frase
gravada no guião da bandeira da Companhia de Caçadores
2614.»
«Conseguimos amizades, solidariedade,
humanidade, resistência e também lutar.»
«Nos confrontos, fomos capazes de
cerrar os dentes para lutar. Então, é aí que estão os
heróis!...»
«Quando o peso da missão nos vergava,
encontramos alento no companheiro, nosso irmão de luta,
afinal, irmão de todas as horas.»

PREFÁCIO
(do Prof. Dr. Abel Couto)
"Os Resistentes de Nhala", no dizer do
seu autor, registam, para a memória da Guerra do
Ultramar, um punhado de "situações vividas e sofridas
por um grupo de mais de uma centena de jovens que
cumpriram o seu serviço militar obrigatório na então
província da Guiné".
Habituados que estamos, devido a uma
aprendizagem passiva e obediente, a ter a História por
lição exemplar, aceitamos, no entanto, sem dificuldade
de maior, uma interpretação moderna e corajosa de uma
História parcial e parcelar. Parcial, porque sempre
sujeita à "Lei" da subjectividade de quem escreve.
Parcelar, porque, e parafraseando o saber popular - dos
humildes, dos pobres, dos humilhados não reza a
História.
Esses resistentes de Nhala são, pois, um
modesto contributo para que a História seja menos
parcelar e ainda um alerta à consciência nacional para o
dever primário de reconhecer que, na guerra do ultramar,
há um só herói: o Povo português.
Sem este trabalho de Manuel Mesquita,
alguns nomes dessa gesta ultramarina passariam como se
nunca tivessem existido. Que valeria um arquitecto que
não encontrasse obreiros que transformassem os traços de
projectos em templos ou palácios?
Nos "Resistentes de Nhala" há nomes que
cumprem a lei complexa da condição humana. O Mário, por
exemplo, sem alma para "moer" injustiças, enche o peito
de coragem e, ao arrepio do protocolo militar, em
público, expõe ao General Spínola o seu problema que
prontamente é atendido.
O João Vasques, o Don Juan alentejano,
que experimentará o amargo da desilusão amorosa,
refugiando -se no álcool e no fumo.
O Manuel Pedro Martins, por alcunha "o
Fugitivo", que, apesar da escassez do seu pénis, cultuou
bem o deus Eros, maugrado a situação caricata que se
relata no livro.
O Carinhas, sempre bem disposto e a
abrilhantar os convívios com a voz de fadista.
Bráulio - o que não estava na guerra para
matar e que, por vezes, tinha conversas sérias com
Deus... É dele o sonho que toca o homem de boa vontade e
até Deus que, mais do o que homem, poderá, se quiser, e
com base nesse sonho, fazer da terra um lugar de
fraternidade universal. A começar: a caserna
tornar-se-ia escola; carros de combate, tractores
agrícolas; metralhadoras, alfaias agrícolas; campos de
batalha, searas; cada mina de guerra, fonte de água e de
vida.
Uma palavra final para a escrita. Em "Os
Resistentes de Nhala" não há lugar para retóricas,
preciosismos de linguagem; todo o tecido
morfossintáctico servido por pontuação lógica, é
expressão de um conteúdo sério de mais para ludismos e
academismos linguísticos.
Pelo seu todo, este livro de Manuel
Mesquita não é mais um livro para estorvo de estantes,
mas um que fazia falta a quem não se conforma que haja
heróis e "vidas desperdiçadas", no dizer de José
Saramago.

«Foi assim que
encontrámos Nhala em 1969»
(legenda da foto na pág.51)

CAPÍTULO "DE BUBA A
NHALA"
(excertos das págs.69-71)
«- "Vamos sair da estrada e entrar em
zonas desconhecidas. Já todos sabemos que aqui não há,
nem pode haver divisas ou galões".
«Viramos à direita e entramos em mata
densa e baixa, logo amanheceu. Caminhámos em fila única
bem perto do outro. Com uma das mãos temos de afastar
ramos e arbustos que teimam em fustigar-nos o rosto e
tirar-nos a visão. Nota-se que na maior parte do
percurso nunca aquilo terá sido caminho.
«Nova paragem: "Zona perigosa, ok?"
«Já nos tínhamos entendido quanto às
laterais, eu controlava à direita e o Leitão à esquerda.
«De quando em vez, o capim substituía a
savana, aí o calor é notório. Já vamos com duas horas de
caminhada, quando fazemos nova paragem. Decido-me pela
posição baixado. Não quero ser alvo. Os macacos fazem
grande alarido. Alguns saguis vem para muito perto de
nós e seguem à nossa frente fazendo trapezias e outra
macaquices. Vamos seguindo devagar.
Nota-se um cheiro diferente. Sinto o coração bater
forte, parece que estou com medo.
«Nova paragem. Quando paramos, reparo que
nada mexe. Todas as atenções estão para lá daquele
caminho, onde nada bole... Os minutos parecem horas, no
solo as «formigas querem subir pelas minhas botas, tento
sacudi-las, mas também não me posso desconcentrar: - "Se
estas forem baga.baga, estou feito com as formigas."
«Caminhamos muito devagar, entrámos numa
zona de savana muito densa, é quase escuro, caminhamos
muito chegados ao outro, eu sou o último. Por vezes
temos de caminhar de cócoras ou de joelhos, condições a
que a floresta nos obriga. Vi sinais de pegadas no chão.
É sinal de passagem muito recente e em sentido contrário
ao que nós levávamos. Parei e baixei-me para ver em
pormenor, era uma marca de pé descalço muitíssimo
grande, comparei com os meus, quase dois, os dois dos
meus é um dele. Nunca tinha visto, mas já me tinham
contado.
«- "Passou por aqui há pouco o Nino
Vieira, está visto que o Nuno anda por estas bandas". "A
equipa do Nino Vieira não costuma a brincar em serviço",
responde o colega da frente".
«Nova paragem à frente. Por gestos, o
colega Leitão diz-me que quer urinar, pede-me para que
troquemos as posições, fica ele em último.
«Nova mensagem: - "Os da frente estão
parados na estrada nova".
«Recomeçamos.
«Há uma curta rajada de metralhadora do
inimigo atrás de mim.
«Caio para o chão, não vejo o meu
colega...
«Mais uma rajada e outra mais curta. Há
balas a pouca altura do chão por cima da minha cabeça.
Eu queria com a face e com o queixo fazer um buraco no
chão, preciso esconder a cabeça bem para baixo. Mais uma
rajada, vejo perfeitamente chamas que saiem das armas
ligeiras.
«Fazem um zumbido sobre a minha cabeça
que é aflitivo, cai-me uma folha e outra sobre a face,
parece uma grande árvore. Não sei do Leitão, não posso
disparar, senão... Com a face bem no chão, olho, e, o
que vejo? Ali a quatro ou cinco metros, homens como eu
com a metralhadora a disparar para nós, a fugir correndo
de lado e gritando para nós.
«- "Filhos da p... Ide para Lisboa.
África é dos africanos".
«Vem outro, corre igual, dispara e grita
para nós e um outro imita os primeiros. Contei quatro ou
cinco. Dois eram cubanos, um dos africanos bem preto,
era muito grande, alto e largo, esse tinha uma camisa
branca. Os dois cubanos envergavam um uniforme parecido
com o nosso, mas mais castanho, um outro africano tinha
uma veste escura.
«Passaram com muita velocidade, correndo
de lado enquanto disparavam e gritavam para nos ofender.
«Onde estará o Leitão, será que foi
agarrado pelos gajos e nem tempo teve de mijar e de
gritar por socorro?
«- "Filhos da p... Macacos de Nhala,
haveis de morrer todos vamos tratar de vós, ide para
Lisboa".
«Mais uma rajada curta, depois outra e
outra mais distante... ».

CANCIONEIRO DE "GUERRA"
(versos do autor)
"ALDEIA FORMOSA"
Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba com a malta
Sujeitos a ir para não vir
Com aquilo que nos falta
São emboscadas e minas,
Bolanhas e covazinhas
Viaturas rebocadas.
Deitaram-nos isto à sorte
De procuráramos a morte
Nestas tão reles estradas
Refrão:
Viaturas velhas, mesmo a cair
E, mesmo assim, a malta tem que seguir
São tristes chaços, em procissão
Andam mecânicos com as chaves de mão em
mão
(música inspirada em "Bairro Alto e seus
amores tão delicados", de Fernando Carvalhinho)
"ADEUS ALDEIA FORMOSA"
Adeus, Aldeia Formosa mas feia
Com turras a atacar,
Adeus, Aldeia, que eu levo na ideia
De não mais cá voltar.
Despedi-me das bolanhas sem igual
Das bajudas da Tabanca
Dos alfaiates do rio Corubal
Antes quero a minha branca.
Ai, ai, ai
Não me importo de ir à toa
O que eu quero é ver Lisboa
E a terra que eu cá sei.
Ai, ai, ai
Já deixei as matacanhas
Pântanos e montanhas
E a Nhala que eu amei.
(música inspirada na canção do filme
"Maria Papoila")
NOTAS
(do autor)
Bolanha - Terreno plano e
impermeável, cuja retenção das águas das chuvas
ocasionava que vários trilhos ficassem submersos durante
tempo indeterminado e que, por obrigatoriedade
operacional, era preciso percorrer. Os guias africanos
sabiam que aquelas pela sua fundura eram transitáveis,
mesmo assim, alguns combatentes mais baixos por vezes
eram elevados sob pena de progredirem debaixo de água...
Turra - Inimigo
Bajudas - Raparigas, Moças,
Meninas.
Tabanca - Povoação, casas
Alfaites - Crocodilos
Corubal - Rio fronteiriço e
traiçoeiro em determinados trechos com a Guiné Conackri,
palco de diversos acidentes graves por afogamento de
combatentes, (meia centena +/-), em Madina do Boé e
Saltinho, etc.
Matacanhas - Pulgões (Siphonaptera)
que se introduziam nas unhas e pele fina entre os dedos,
provocando dores enormes, inibindo a progressão do
combatente.
Aldeia Formosa, Buba e Nhala -
Povoações nativas, com dispositivos militares, por
questões de estratégia e logística.