.

 

Início O Autor História A Viagem Moçambique Livros Notícias Procura Encontros Imagens Mailing List Ligações Mapa do Site

Share |

Brasões, Guiões e Crachás

Siga-nos

Fórum UTW

Pesquisar no portal UTM

Livros

Trabalhos, textos sobre a Guerra do Ultramar ou livros

 

 

Manuel Pedro Dias 

ex-Furriel Miliciano

 

Companhia de Caçadores 1559

 

Batalhão de Caçadores 1891

 

Moçambique 1966/1968

 

Contactos: Telemóvel: 914 631 055  E-mail: mpdias@netcabo.pt

 

Trabalhos e Livros

"O Regresso"

Recentemente foi editado um livro da nossa autoria, com o título Moçambique memórias de um combatente, que reuniu todas as crónicas que temos escrito, quer nesta publicação, quer na revista Batalhão.

 

Já proferimos, por diversas vezes, que o Jornal do Exército se pode considerar, em parte, responsável pela publicação daquele livro.

 

A disponibilidade que nos tem sido prestada, ao longo dos anos, pelos Corpos Directivos do Jornal do Exército, permitindo-nos escrever de forma continuada sobre a vivência adquirida em Moçambique e que o tempo gravou na nossa memória, justifica aquela afirmação.

 

As críticas que temos recebido, pela grande maioria daqueles que adquiriram o livro, são motivo de alento para continuar a descrever aquela vivência, adquirida nas mais díspares situações.

 

Vontade não nos falta, “matéria-prima” muito menos, assim queiram os dirigentes e leitores desta prestigiada publicação.

 

Neste pressuposto, iniciamos hoje um novo ciclo de crónicas orientando a bússola, tal como sucedeu com os anteriores escritos, no sentido de nos traçar o azimute certo para atingir o objectivo proposto, que é, e será sempre, a dignificação do Combatente da Guerra do Ultramar.

 

 Parece que foi ontem o dia em que desembarcámos no Cais da Rocha de Conde de Óbidos, mas o tempo, “correndo célere”, debitou já trinta e seis anos sobre aquela data. Data essa, que consideramos ser o término da nossa comissão de serviço prestada em Moçambique durante vinte e oito longos meses.

 

Este enfático paradoxo que acabámos de transcrever, afirmando que trinta e seis anos passaram mais rapidamente que vinte e oito meses, foi propositado, uma vez que quisemos transmitir a ideia que o tempo decorre, no imaginário de cada um, com a rapidez inversamente proporcional ao desejado.

 

Estávamos no início do ano de 1968, a quatro meses, portanto, de concluir a nossa comissão de serviço. Contrariamente ao que julgávamos, com o aproximar da tão desejada data do embarque, os dias tornavam-se ainda mais lentos, os ponteiros do relógio, como que calcinados pelas fortes cacimbadas matinais, pareciam não querer circular nos seus mostradores.

 

Logo pela manhã, o primeiro dos graduados que acordasse tinha como incumbência eliminar mais um dia, com uma cruz, num decorativo calendário pendurado na parede e que tinha estampado uma esbelta figura feminina em biquini na praia de Inhambane, imagem essa, à época, muito ousada, mas se a comparássemos com aquelas que hoje observamos em comuns lugares públicos, poderíamos considerá-la como verdadeira postura pudicícia. Estamos cientes, que era habitual em quase todas as unidades, utilizar o método do calendário para controlar os dias que faltavam para o final da comissão. Como se isso fizesse avançar o tempo!

 

À medida que a data do 2.º aniversário da nossa comissão se aproximava, aumentava a tensão no seio da rapaziada que vivia na esperança de receber, a qualquer momento, a desejada boa-nova do dia do embarque.

 

Mas ao contrário do que esperávamos, chegou-nos, sim, a notícia de que uma outra companhia do Batalhão tinha sido, de novo, destacada para uma zona de intervenção, no Norte da Província. O “mata-bicho” adivinhava-se longo, muito longo mesmo.

 

A correspondência trocada com a Metrópole não versava outra temática senão aquela relacionada com a nossa viagem. Projectavam-se ideias para a chegada, planificava-se o futuro.

 

De quando em quando, em conversa com outros camaradas de armas, comentávamos o azar daquela companhia que tinha regressado ao combate já em tempo de “desconto”. Deus queira que nada lhes aconteça, dizíamos uns para os outros. Felizmente nada sucedeu em termos de combate. No entanto, um brutal acidente de viação vitimou, um mês antes do embarque, dois militares daquela unidade.  

 

Foi na manhã de 31 de Julho, estando o pessoal formado, como era habitual, na improvisada parada do quartel, que o capitão, perante a companhia, dá ordem de sentido. Pela sua expressão adivinhava-se que queria transmitir alguma mensagem. Apesar de nos encontrarmos na posição de sentido, o que queria dizer, na gíria, “não mexer...”, a agitação crescia a cada minuto.

 

Com o seu disfarçado sentido de humor, ordenou: - O 1º pelotão está destacado para ir à lenha e à água; o 2.º vai para a capinagem; o 3º etc. etc.

 

Escalonado o pessoal, simulou retirar-se, após ter dado dois ou três passos voltou atrás e exclamou: - Ah! Mais uma coisa, dia 15 de Agosto embarcaremos no Vera Cruz em Nacala...

 

Se bem que a qualquer momento a notícia era já esperada, não deixou de provocar o natural impacto junto dos presentes que, face à sua posição na formatura, não perderam, por completo, a compostura. Excepção feita a um comandante de pelotão o qual, não se contendo, pegou na boina atirou-a com todas as suas forças para bem longe, gritando: - “Viv’ààà peluda”. Não se livrando de seguida, pela sua atitude, duma valente reprimenda dada pelo Comandante da Companhia.

 

Naquela manhã de início de Agosto, a azáfama no aquartelamento era enorme. Por todos os lados se viam malas, sacos e caixotes prontos a embarcar. A rapaziada, deambulando impaciente, aguardava a chegada dos “checas”, que a vinha render e que estava prevista logo ao romper da aurora.

 

Uma densa nuvem de pó, descortinada ao longe, era sinal que a coluna se aproximava o que levou a aumentar a agitação no local. A tão desejada hora chegara.

 

Antes de subirmos para as viaturas que nos transportariam até à estação dos caminhos de ferro de Mutuali, relançámos um último olhar para a cela que nos servira de quarto, durante muitos meses, já desprovida de qualquer ornamento a não ser o tal calendário, contador do tempo, onde a banhista de Inhambane, com o seu alvo sorriso, parecia querer dizer: - Boa viagem rapazes.

 

Todavia, a imagem mais marcante da saída do Molumbo, ainda hoje não esquecida, foi a do nosso mainato (criado), o Joaquim, rapaz de 13 anos, que chorava convulsivamente em nosso redor suplicando que o trouxéssemos para Lisboa. Com as palavras adequadas à sua compreensão tentámos explicar-lhe da impossibilidade de tal procedimento. Tivemos, inclusive, o cuidado de o deixar bem recomendado a um dos furriéis acabado de chegar. Viemos a saber, anos mais tarde, que o Joaquim continuou a ser estimado pelos sucessivos graduados que foram passando pelo Molumbo. Meu amigo longínquo, que será feito de ti?

 

A refulgente baía de Nacala com o seu bem acentuado recorte, que a caracteriza, aprimorou-se para receber o paquete Vera Cruz. O mar encontrava-se calmo, diríamos mesmo que mais parecia um aveludado tapete de cor esmeralda, tal era a sua mansidão. A proa do navio, rompendo as serenas águas, direccionava-se para o local de atracagem onde se encontravam, ansiosos para embarcar, os militares do nosso Batalhão.

 

Os recém chegados, amontoados no tombadilho do navio, olhavam para terra com uma lividez estampada nos rostos observando todo aquele cenário de alegria que se desenrolava no cais.

 

Naquela troca de contingentes, tivemos directamente conhecimento dum caso que é digno e oportuno de ser registado.

 

Um militar do nosso Batalhão, que não nos acompanhou no regresso visto ter ido em rendição individual, chegando, por essa razão, mais tarde à Companhia, despediu-se dos seus camaradas ainda no local da sede da Unidade a que pertencia, marchando depois rumo a Nampula onde foi colocado, para concluir o resto da sua comissão de serviço, na Companhia de Transportes.  

 

Aconteceu que quando o Batalhão chegou a Nacala, para espanto de todos, lá se encontrava à nossa espera o Amilcar Raimundo, assim se chamava aquele militar. Os seus amigos mais chegados ficaram radiantes julgando que ele nos acompanharia no regresso à Metrópole. Porém, a razão da sua presença naquele local não era essa, mas sim para abraçar um dos seus irmãos que vinha no Vera Cruz para cumprir, tal como ele, a sua comissão de serviço no Norte de Moçambique. Pensámos para connosco, quão doloroso deveria ser o sofrimento daquela mãe ao ver-se privada, em simultâneo, de dois dos seus filhos.

 

À parte uma pequena tempestade, ao dobrar o Cabo, que obrigou praticamente todos os viajantes a recolherem aos seus beliches durante três dias, a viagem decorreu sem mais incidentes.

 

O tempo era passado jogando às cartas ou lendo. De quando em quando, uma sessão de cinema quebrava a rotina. Lembramos ainda a carismática pianista da sala de 2.ª classe, já com provecta idade e alguns “quilitos” a mais, que com os sons monocórdicos do seu velho piano ia animando os jogadores de king.  

 

A manhã de 4 de Setembro de 1968, acordara fúlgida e toda vestida de azul. Singrávamos já na barra de Cascais. À nossa esquerda contemplávamos, com nitidez, as espumosas ondas que se espraiavam nas imensas praias da Linha, cheias de veraneantes.

Finalmente, a imponente ponte sobre o Tejo, que quando embarcámos ainda não tinha sido inaugurada, encontrava-se diante de nós, majestosa, como que a apresentar-nos as boas-vindas.

 

A movimentação no interior do navio aumentava à medida que este se ia aproximando do cais. A ordem tinha que ser mantida, uma vez que todos queriam dirigir-se para o tombadilho virado para terra. Nós próprios tivemos que manter essa ordem junto do pelotão. Por sorte, foi-nos destinado um local bem privilegiado.

 

Ainda distante do cais, descortinavam-se já milhares de pessoas que aguardavam com desmesurada ansiedade a chegada dos seus ente queridos.

 

Por instantes, fomos assolados por uma mescla de pensamentos que nos fizeram recordar aquele mesmo local, quando há mais de dois anos, em circunstâncias inversas, em que o barco se afastava da pedra, sentimos um ímpeto desejo de voltar abraçar aqueles que tínhamos acabado de deixar em terra. Ainda os lenços agitados nas suas mãos, acenando ritmicamente em sinal de despedida, se descortinavam, já as saudades nos apertavam o peito. O tempo a partir daí foi infindável.

 

O sonoro apito do navio, qual clic mágico, fez-nos voltar à realidade e ali nos encontrávamos, debruçados sobre uma das varandas, tentando descortinar, naquela mole humana, algum dos nossos familiares e amigos para concretizarmos aquele forte desejo que nos acompanhou logo desde a partida e que foi aumentando, progressivamente, durante a permanência em Moçambique. A escada do portaló foi lançada ao cais. De imediato a ordem de saída foi dada. Momento ímpar aquele. Por todo o lado se viam rostos ansiosos procurando os seus familiares os quais, de braços no ar, ostentavam placas identificativas, previamente combinadas, com as mais diversas formas e feitios.

 

De cada vez que um grupo familiar se encontrava era a emoção generalizada onde o riso se envolvia com o choro, os abraços com os beijos, formando, deste modo, uma simbiose emotiva difícil de imaginar. Só quem viveu tais momentos a saberá descrever.

 

A nossa situação não foi diferente. A ânsia de encontrar quem desejávamos era tal que quase não descortinávamos uma pequeníssima placa, com o nome de Alpalhão, energicamente segura pela mão do nosso pai que se encontrava rodeado te todos aqueles que mais gostávamos que ali se encontrassem, excepção feita ao nosso avô paterno que, pela sua idade, não se deslocou a Lisboa.

 

Visitámo-lo dois dias depois, já velhinho, mas muito lúcido. As suas primeiras palavras, chorando, foram: - Pronto, meu neto! Já posso morrer descansado.

 

Assim aconteceu, dois meses depois.

 

No cais, acalmada a natural “erupção” emotiva, que as saudades provocaram, mais um contingente dava por concluída a sua missão.  

 

 Valeu a pena?

 

 Tudo vale a pena se a alma não é pequena, assim disse Fernando Pessoa.

 

E a alma daqueles homens era grande, enorme, talvez maior que o velho continente onde deixaram mais de dois anos do viço da sua juventude.

 

Manuel Pedro Dias

 

© UTW online desde 30Mar2006

Traffic Rank

Portal do UTW: Criado e mantido por um grupo de Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar

Voltar ao Topo