

Manuel Pedro Dias
ex-Furriel Miliciano
Companhia de Caçadores 1559
Batalhão de Caçadores
1891
Moçambique 1966/1968
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Trabalhos e Livros
"Aquele
final de tarde"
Naquele final de tarde de Agosto do ano de 1968, quando
o Sol declinava suavemente como uma grande bola de fogo
dourada, sobre as cálidas águas do porto de Nacala,
vislumbrava-se, não muito longe, a proa do paquete Vera
Cruz já direccionada para o cais.
Trazia aquele navio, como objectivo,
“descarregar” mais um contingente de tropas que iria
povoar as densas e sempre perigosas matas dos distritos
de Cabo Delgado e Niassa e levar, por sua vez, de
retorno, aqueles que, como nós, tinham terminado a sua
longa comissão de serviço de 840 dias, nos distritos da
Zambézia e Niassa.
Enquanto não embarcávamos, encontrámos
refúgio num recanto do cais, junto a uns caixotes de
madeira empilhados e prontos a serem carregados, e em
jeito de reflexão presenciámos a chegada daqueles
camaradas de armas que iriam enfrentar, assim como o
fizéramos, as mais diversas situações encontradas em
cenário de guerra.
No cais, com o aproximar do navio, centenas
de militares manifestavam-se ruidosamente, por um lado,
por saberem que dentro de poucas horas estariam dentro
do “veículo” que os transportaria até à Metrópole por
outro, quererem demonstrar aos “checas”, acabados de
chegar, o seu estatuto de “velhice”.
A refulgência do astro rei já deixara de
brilhar sobre as mansas águas da baía de Nacala, dando
lugar a um, não menos belo, crepúsculo, que contrastava
com a lividez dos rostos daqueles homens debruçados
sobre o tombadilho do barco, observando, atónitos, a
algazarra que recrudescia à medida que se aproximavam do
cais.
O ar trépido estampado nos seus olhares, bem
como a farda camuflada que envergavam, ainda reluzente,
característica dos tecidos novos e não trajados,
trouxera-nos à lembrança o nosso desembarque, naquele
mesmo lugar, há 28 meses atrás, em que sentimos,
certamente como eles estariam a sentir naquele momento,
as mesmas angústias e as iguais incertezas quanto ao
futuro. Contudo, no nosso íntimo uma perene esperança
confidenciou-nos, então, que o regresso seria uma
certeza.
Entretanto, aproximava-se a hora de
abandonar o nosso local de “observação” porquanto a
escada do portaló, debruçada sobre o cais, lançava para
terra os últimos jovens daquele contingente acabado de
chegar.
Em nosso redor movimentavam-se já os
guindastes prontos para lançarem ao porão aqueles
caixotes que nos serviram de encosto enquanto ali
permanecemos.
Foi então, quando nos retirávamos, que nos
apercebemos do conteúdo daquelas “embalagens” de
madeira: no seu interior encontravam-se urnas de
militares falecidos em campanha que seguiriam connosco
até à Metrópole.
Aquele lúgubre espectáculo afrouxara,
momentaneamente, o nosso entusiasmo pelo embarque. À
memória vieram-nos os amigos: Cartaxo, Prieto, Freitas,
Simões etc. etc... que naquele mesmo lugar, há 28 meses
atrás, sentiram, igualmente, a mesma forte esperança
no regresso. Mas, infelizmente esses amigos já não nos
acompanhariam com vida. Ficaram pelo caminho,
aumentando a longa lista dos que tombaram, no fulgor
da sua juventude, nas paradoxais, belas e perigosas
matas de África.
O navio que baloiçava suavemente sobre o
atapetado manto, formado pelas águas da baía, e já
pronto a receber nova “carga”, emanava, do seu interior,
uma trémula luz que esbatida sobre o cais, repleto de
militares, emprestava àquele ambiente um misto e
policromo quadro, irradiado das fardas camufladas, onde
o brilho das envergadas pelos “checas” sobressaía das
dos “Kokuanas” (Velhos) já debotadas pelos muitos meses
de uso.
Subindo as escadas de acesso
ao interior do navio, cismando, relançámos um último
olhar para terra e, num ímpeto, gritámos interiormente
¾
BOA SORTE RAPAZES E FELIZ REGRESSO !
¾ Certamente que alguns deles
(quais?) não estariam ali, 2 anos depois, subindo para
o barco pelos seus próprios meios, e na Metrópole não
encontrariam o desejado conchego familiar a aguardá-los.
Mais além, vislumbrámos ainda, na penumbra,
a silhueta dum daqueles caixotes, baloiçando no ar,
suspenso pelos fortes “tentáculos” do guindaste de ferro
que o colocaria no lugar que lhe fora destinado, o
porão.
Ainda hoje, decorridas 4 décadas, a memória
recorda com nitidez aquela cena de reacções diferentes
para os vários intervenientes.
Será que mereceu a pena?? Que responda quem
o decidiu...
Manuel Pedro Dias