

Manuel Pedro Dias
ex-Furriel Miliciano
Companhia de Caçadores 1559
Batalhão de Caçadores
1891
Moçambique 1966/1968
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Trabalhos e Livros
Ponto de vista
(escrito em 2005):
"Aquele
“cozinhado” era mesmo pernicioso"
Recordo o tempo da
minha juventude, vivendo ainda no Alto Alentejo, em que
o meu pai, por ocasião do Outono, quando as folhas
persistentes das azinheiras completavam o seu ciclo de
vida, atapetando os montados, se embrenhava, antes das
matinas tocarem no vetusto sino da torre da Igreja,
pelos campos na procura dos apetecidos tortulhos,
acepipe do agrado de toda a família. Para seleccionar
aquela espécie de cogumelos, era necessário ser grande
especialista uma vez que no seio da sua bravia cultura
existiam, disfarçadamente, alguns de tal forma
“calamitosos” que, quando ingeridos, matavam.
O meu pai, com a sua
perícia, distinguia-os à vista desarmada, trazendo
sempre os bons, os comestíveis.
Todavia, a minha mãe,
com redobrada precaução ao confeccioná-los, introduzia
sempre no recipiente culinário uma vulgar folha de
prata, daquelas que embrulhavam os chocolates, a qual,
segundo a sabedoria popular, se escurecesse indicava que
os tortulhos eram nocivos.
Estas recordações
desceram à minha memória quando, há pouco tempo, em
convalescença de uma intervenção cirúrgica, ao arrumar a
minha estante ter verificado da grande variedade
documental de que é composto o meu acervo bibliográfico
relacionado com a Guerra do Ultramar.
Aquilo que pensava
ser um trabalho rápido, prolongou-se pela noite dentro,
uma vez que ao contemplar toda aquela diversidade de
escritos me levou a catalogá-los de acordo com o que
entendi ser a leitura maledicente e a outra. A isenta, a
verdadeira, segundo o nosso critério, lógica, óbvia e
naturalmente.
Não foi tarefa
difícil, uma vez que, tal como o meu pai distinguia, só
pelo olhar, os fungos comestíveis dos venenosos, também
eu deslindei, num relance, no seio da minha biblioteca o
“trigo” do “joio”.
Na verdade, aquilo
que mais me absorveu o tempo não foi a arrumação, mas
sim os sucessivos impulsos que me levavam a ler, melhor
dizendo, reler, este ou aquele artigo, aquela ou a outra
crónica.
Fixei-me, com mais
pormenor, em dois livros de crónicas, que já fazem parte
do meu espólio há muitos, muitos anos e que nunca
consegui ler até ao fim qualquer um dos seus relatos.
A razão daquele
procedimento não se prendia com a falta de tempo mas sim
pelo chorrilho de pensamentos saídos das
“revolucionárias” mentes dos seus autores, também eles
ex-combatentes na Guerra do Ultramar, provocando-me
tamanha “urticária” emocional, ao iniciar a leitura, que
me levava, por isso, a suspendê-la.
Naquele dia,
predisposicionado para o efeito, li, de fio a pavio,
aqueles livros. A sua leitura deixou-me perplexo ao
verificar, praticamente em todas as (des) crónicas, como
era possível a cegueira da defesa de um “ideal
oportunista”, que grassava na altura (ainda existem
reminiscências), desvalorizar, com uma falsa inocuidade,
a atitude dos milhares de jovens que actuaram em África,
então portuguesa. Nas centenas de páginas que compõem
aquela "obra", e outras, não ressalta uma palavra do
muito de bom que se fez: Não há uma referência às tantas
lágrimas choradas pela não menos tanta população civil,
quando nos viam partir, reconhecida pelo bem que "os
tropas" lhes fizeram, curando, dando de comer, vestindo;
não há um sinal ao respeito mutuo e camaradagem
existentes no seio de tantas unidades, onde as
hierarquias indiferentes aos “galões” e “divisas” que
ostentavam nos seus ombros não os faziam prevalecer para
colher proveitos próprios, mas sim usufruir dos mesmos
benefícios de toda a Unidade dando, por isso, provas de
se encontrarem todos no mesmo “barco”, remando em
comunhão para o levar a bom porto.
Nada, não se lia uma
palavra nesse sentido. Elogiava-se o inimigo
denegriam-se os nossos. Com esforço consegui ler tudo de
fio a pavio.
Após concluir aquela
leitura subsistiram-me algumas dúvidas: Será que tinha
absorvido bem o seu conteúdo? Será mesmo que o meu
excesso de “cruzado” em defesa do bom nome daqueles que
andaram por terras de África, me levaram a interpretar o
que não estava escrito?
Tinha que dissipar
esta incerteza existencial para isso: Introduzi o
livro num caldeirão, juntamente com uma prata, daquelas
que envolvem as doces e variadas guloseimas de hoje e
aguardei para me inteirar do resultado. Alguns segundos
depois, a brilhante cor prateada daquele pedacito de
papel metamorfoseou-se num negro muito escuro, muito
negro mesmo.
Não restam dúvidas que a sabedoria popular prevalece,
por vezes, acima das grandes teses filosóficas. Aquele “cozinhado”
era mesmo pernicioso.
Manuel Pedro Dias