
TRABALHOS, TEXTOS
SOBRE OPERAÇÕES MILITARES ou LIVROS
Elementos cedidos por
Ilídio Costa e a
transcrição foi efectuada
pela equipa do
ultramar.terraweb.
"Eu voltei a Moçambique"
Texto da autoria de
Antero Aníbal Ribeiro da Silva
in: "O Referencial" -
Abril / Junho
CUMPRI TRÊS COMISSÕES
de serviço como militar na ex-colónia (não há que ter
medo do termo) de Moçambique, entre os últimos anos da
década de sessenta e primeiros da década de setenta do
século passado.
Passei lá inúmeros
momentos maus, mas ligam-me também a essa terra inúmeros
afectos.
A minha primeira
estadia foi no posto de alferes, para "estagiar" como
adjunto de comandante de companhia em zona de guerra.
Claro que eu e todos os meus camaradas de curso, que
marcharam nas mesmas circunstâncias, fomos tudo menos
adjuntos, tendo de facto sido "paus para toda a obra".
Era somente o prelúdio do que nos viria a esperar no
futuro.
Mas, não é isso que
vem agora ao caso.
Na minha segunda ida
a Moçambique, em plena guerra, foi-me entregue o comando
de uma companhia (cerca de 160 homens), que foi colocada
e permaneceu vinte e um meses em Mueda, no então
distrito de Cabo Delgado, terra essa por demais
conhecida de quem passou por estas lides.
Essa companhia foi
muito sacrificada, tendo inúmeras baixas, facilmente
contabilizáveis as evidentes, mas com mazelas,
porventura bem profundas, em muitos dos que regressaram.
A minha terceira
incursão por aquelas terras já decorreu em pleno
processo de solidificação da Paz, decorrente dos acordos
de Lusaka, após o 25 de Abril de 1974.
Mas, foi com outro
ânimo que me decorreu esta última estadia. Desenganem-se
no entanto aqueles que porventura possam pensar que
neste período só vivi alegrias e que os escolhos foram
fáceis de ultrapassar. De qualquer forma, o estado de
espírito era completamente diferente, chegando ao fim
com a sensação de ter ajudado a construir algo.
Após esta introdução,
que considerei necessária para o que se segue, vou
avançar um pouco no tempo.
Durante os anos que
desde então decorreram tive sempre grande interesse em
acompanhar o que se ia passando nesse novo país, fazendo
votos para que tudo quanto de lá viesse fossem boas
notícias, de felicidade e prosperidade para aquele povo.
Anualmente,
ex-militares integrantes da Companhia que comandei na
segunda comissão, nos vamos reunindo à volta de um
repasto, rebuscando no baú da nossa memória colectiva,
levando muitos de nós os filhos e até netos,
interessando-nos pelos problemas actuais da vida de cada
um e manifestando a nossa solidariedade caldeada entre
dificuldades e perigos de outrora. Tudo isso nos leva
também a ter aquele longínquo país no nosso pensamento.
Para quem por lá não passou talvez isto não seja muito
fácil de entender, mas não há credos políticos ou
religiosos que destruam esta vontade de estarmos juntos.
Há poucos meses
atrás, um desses meus ex-companheiros, com quem vou
mantendo um relacionamento próximo, telefonou-me dando
conta que iria passar num dos canais da nossa televisão
uma reportagem sobre uma ida de ex-combatentes
portugueses a Moçambique, tendo até já os contactos do
organizador da viagem.
Tomei a devida nota
da informação e vi a reportagem.
A minha mulher, que
já me tinha inúmeras vezes ouvido desabafar que gostaria
de rever Moçambique, entendeu a minha grande vontade de
participar naquela experiência. Não foi preciso mais
nada para que essa ideia não me abandonasse a cabeça.
Colhi as necessárias
informações sobre a idoneidade da pessoa que organizava
aquelas viagens, tentei em conjunto com o meu
ex-camarada convencer mais alguns companheiros nossos a
partilhar a mesma experiência e vá de tomar a decisão.
A sorte estava
lançada.
Entretanto, ano após
ano, em algumas das escolas onde fui solicitado a falar
sobre o 25 de Abril, em representação da nossa
Associação, vários alunos me dirigiam perguntas deste
género: Se andou na guerra e não
acreditava
nela, por que a fez? Como é que após ter combatido
contra alguém, consegue compartilhar a Paz com ele?
Porque ingressou na carreira militar, sabendo que era
aquela guerra que o esperava?
Tantas perguntas em
que as respostas serão provavelmente fáceis de perceber
entre nós, oficiais do mesmo ofício e com percursos de
vida comuns, mas que não serão da mesma forma
entendíveis pelos jovens para quem falamos.
Lá lhes ia
respondendo com toda a sinceridade e na medida do
possível, mas eu próprio me interrogava por vezes porque
é que vendo de repente tudo com tanta clareza, me deixei
enredar anos a fio numa aventura, a guerra colonial, sem
sentido nenhum e condenada ao fracasso.
Quando fui contando a
alguns dos meus amigos e também a camaradas militares a
decisão de fazer esta viagem, com frequência lá vinha a
pergunta: Tendo tu lá passado momentos tão maus, por
que queres lá voltar?
Ou então afirmações
do tipo: Provavelmente tens necessidade de fazer a
tua "catarse".
Depois de pensar por
momentos, a uns e outros dei a seguinte resposta. Talvez
me movam três razões: em primeiro lugar a curiosidade
de saber como evoluiu aquela terra; em segundo
lugar, talvez chorar em locais onde porventura o
deveria ter feito e a minha condição de chefe então o
impediu; por último, confirmar a ideia que tenho
conviver bem com o meu passado.
Eis-me assim de
repente com os meus desconhecidos companheiros de
viagem, com excepção do meu ex-camarada Abílio, único
que eu conhecia.
Não foi fácil gerir
durante duas semanas as relações com os outros elementos
do grupo, que partiram com motivações diversas e alguns
mesmo a conselho médico. O elo que compartilhávamos era
o de todos termos por lá passado.
Vi coisas de que
gostei e outras que me deixaram triste.
Detestei Maputo
(antiga Lourenço Marques) e a Ilha de Moçambique. A
imundície e a degradação do património edificado e das
ruas não têm nada a ver com a imagem que eu guardava de
outrora daquelas duas belas localidades.
A simpatia das
pessoas, essa sim está bem presente, mas é também
evidente a sua carência dos bens mais elementares. Não
que tenha visto o rosto da fome.
Percorri o Niassa,
que não conhecia. Fizemos base em Lichinga (antiga Vila
Cabral) e demos uma saltada a Metangula, onde uma
empresa sul-africana termina as obras de recuperação do
aeroporto. O lago Niassa é lindo.
Em Nampula,
onde permanecemos dois dias, demos conta de um movimento
intenso, um comércio que parece ter alguma vitalidade e
alguma marginalidade de rua.
Pemba (antiga Porto
Amélia), mesmo para quem já conhecia a sua enorme
beleza, como era o meu caso, foi uma agradável surpresa,
pelo investimento turístico que se nota estar a ser
realizado. Tivemos ocasião de o comprovar no belíssimo
complexo onde ficamos instalados.
Finalmente, eis-me a
caminho de Mueda, passando por Macomia, Chai, Antadora,
Oasse, Diaca e Sagal. Os aldeamentos ao longo da
estrada, já alcatroada, são muito mais frequentes que em
tempos idos, extensos e mais limpos que as cidades.

O reencontro em
Mueda permitiu uma troca de memórias com ex-chefes
militares da Frelimo
As pessoas nota-se
que têm falta de quase tudo, mas não revelam sinais de
subnutrição e de uma maneira geral apresentam-se
razoavelmente vestidas e calçadas.
As crianças
dirigem-se todas para a escola, com os seus livros e
cadernos debaixo do braço. Esses jovens falam todos
português.
Onde paramos
tomam-nos de assalto, ora querendo vender-nos algo
(mandioca, milho, frangos, bananas, etc.), ou então
pedindo-nos de tudo um pouco. São simpáticos e curiosos.
Em Diaca, localidade
em que estive na minha primeira comissão, procurei
localizar um "mainato" (criado) da antiga messe de
oficiais, de seu nome Camões, mas fui informado do seu
falecimento no ano passado num acidente de viação. Tive
oportunidade de abraçar um seu irmão, a quem lhe deixei
uma lembrança e com o qual tirei uma fotografia. De
seguida fugi ligeiro de um homem que apresentava sinais
de perturbações mentais e que me perseguiu com ar
ameaçador, empunhando uma catana, gritando para eu
entregar, ao que me foi dado a perceber, a máquina
fotográfica. mas tudo acabou em bem. Do antigo quartel
só restam as ruínas da messe de oficiais.
A famigerada curva
da morte, a pequena distância do Sagal, já não
existe pura e simplesmente, devido ao traçado da actual
estrada.
Chegámos por fim a
Mueda onde nos aguardava uma grande recepção, em que
estariam praticamente presentes todos os habitantes da
povoação com o respectivo administrador à frente,
acompanhado pelos dirigentes mais representativos da
Frelimo da localidade. Meteu danças tradicionais,
seguindo-se um almoço com as autoridades referidas e
discursos de ambas as partes. No final oferecemos
lembranças para colmatar algumas das inúmeras carências
daquela gente, especialmente material escolar.
O actual
hotel/restaurante funciona nas instalações da antiga
messe de oficiais do batalhão. Muito poucas das antigas
instalações militares estão hoje ocupadas e grande parte
das ainda existentes estão em ruínas.
Uma agradável
excepção diz respeito a uma parte dos antigos
alojamentos dos oficiais do batalhão, cujos quartos
estão integrados na escola secundária local, como salas
de aula ou para fins administrativos. O ensino nessa
escola prolonga-se até ao 12.º ano de escolaridade.
Conversei com vários
jovens professores que denotam uma enorme vontade de
aumentar os seus conhecimentos e de terem projectos mais
ambiciosos para as suas vidas. Pertencem à geração que
pode modificar para melhor o futuro daquele país. Para
alguns deles já remeti algumas publicações técnicas, que
julgo lhes farão falta. Espero que lhes tenham chegado
às mãos.
Tive oportunidade de
cumprimentar e trocar memórias com ex-chefes militares
da Frelimo, alguns dos quais estiveram em locais de
combate muito próximos das minhas tropas, no tempo da
guerra. Essa experiência que para mim não foi inédita,
já que a tinha vivido na minha última comissão, foi no
entanto gratificante.
Visitei o local de
captação de águas para aquela localidade, onde outrora
tinha em permanência um pequeno efectivo da minha
companhia a montar a segurança. Está tudo no mesmo
sítio, mas mais degradado. Necessita com urgência de
novas bombas para puxarem a água. Grande parte das
inscrições que deixámos naquelas paredes desapareceram
com o tempo, mas sobrevivem ainda algumas. As placas
feitas em cimento, com o nome de muitos de nós, ainda lá
continuam.
Vi refugiados da
Tanzânia e da Somália que, embora tivessem optado pelo
acolhimento num país pobre, vivem em Paz. Este é um
aspecto que, para um turista ocasional, parece evidente
em todo o território visitado.
Embora cansado, mal
dormido e sujo, deixei Mueda com um sentimento de
apaziguamento. Além disso, fiquei com a sensação de que
aquelas pessoas gostam de nós, portugueses.
Depois foi o regresso
a Maputo, por estrada e via Nampula, onde apanhámos o
avião.
Esses últimos dias
passados na capital, não alteraram em nada a opinião já
formulada, permitindo-me só fazer um pouco de praia e
comer mais uma bela mariscada e a bom preço.
Como conclusão, posso
afirmar-vos com toda a veemência que satisfiz a minha
curiosidade e visitei tudo aquilo que verdadeiramente
queria visitar, chorei em locais onde não tinha chorado
antes e confirmei que vivo muito bem com o meu passado.
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