José D'Abranches Leitão
Furriel Mil.º de Cavalaria
Companhia de
Cavalaria 2752
Batalhão de Cavalaria 2923
«PERGUNTAI AO INIMIGO QUEM SOMOS»
Moçambique:
31Ago1970 a 31Out1972
Texto:
Serra do Mapé - Outubro 1970
Eram os últimos
dias de Serra!
O
António Ribeiro Pimentel [Furriel
Mil.º de Cavalaria], agarrado ao
cigarro, ao meu lado, vai olhando
para a floresta ... e vendo-me a
escrever um aerograma, diz-me que
ainda não escreveu nenhum. Nem para
a família em Borbela, Vila Real de
Trás-os-Montes!
Interrogo-o porque não o faz e a
resposta é rápida:
- Não escrevo, porque ainda não
esqueci as lágrimas de minha mãe, ao
despedir-se de mim! Não quero que
volte a chorar! Digo-lhe que se a
família receber notícias nossas, as
lágrimas que verterão serão de
alegria. Sinal de que ainda estamos
vivos!
Mas apesar da minha insistência ao
entregar-lhe um aerograma e a
esferográfica, continua a olhar para
o horizonte, talvez com o pensamento
de que Borbela, sua terra Natal,
fica mesmo ali para lá da linha do
horizonte!
Transmontano puro, mas de poucas
falas! Entretanto aproxima-se o
Doutel, também transmontano que
apesar da sua 3.ª classe, tem
dificuldade em escrever. Diz-me que
cedo começou na lavoura, pastoreando
o gado e nunca mais pegou numa
caneta. Peço-lhe o nome dos
familiares para que a missiva seja
mais "autêntica"! Conta-me a vida
dura porque passou! Os invernos
rigorosos de muita neve, quando
levava as cabras para o monte,
quando o seu "farrusco" farejava
algum lobo, e só voltava ofegante,
mas com a missão cumprida. Afugentou
os famintos lobos!
A solidão, o ar puro transmontano,
perto da raia. Os cigarros feitos a
de barba de milho! O cajado, bem
ensaboado de mãos calejadas, a
navalha com que cortava o naco de
presunto ou fazia as suas "obras de
arte" num bocado de madeira, para
passar o tempo!
Tudo o que me vai contando, vai
"alimentar" a minha imaginação para
escrever cartas e aerogramas para
alguns soldados que me solicitam. Só
cartas de amor, nunca inventei!
Estas são íntimas!
Mas voltando ao reservado António
Ribeiro Pimentel, eram longas as
nossas conversas. Também deixou o
7.º Ano do Liceu incompleto...
Era preciso um saca-rolhas para se
"abrir" mais! Gostaria de um dia
cursar Direito na Universidade de
Coimbra! O Porto ficava mais perto,
mas a UC, era uma referência! Sonho
interrompido pela estúpida guerra do
Ultramar, dita Colonial!
Como transmontano, era de rija
fibra! Os soldados que comandava
tinha total confiança no "meu"
Furriel!
Mais tarde já estávamos em Macomia,
seria ferido ligeiramente, numa
operação para os lados do Messalo!
Apesar de ferido, o Pimentel não
desistiu e reagiu ao fogo do IN.
Mais tarde foi-lhe atribuída uma
Medalha de 4.ª Classe [na
altura, 1.º Cabo Mil.º de Cavalaria]
pela bravura demonstrada. Mas nunca
consegui convencê-lo à família, ou
melhor, só consegui que escrevesse
dois aerogramas, um no Natal de 70 e
outro no Natal de 1971! Se a memória
não me atraiçoa, não mais escreveu à
família.
Acabada a "guerra"... só nós
voltamos a ver mais tarde, no Porto,
porque telefonei para a família, e
me deram o contacto da Pensão onde
vivia! Marcámos almoço, que nunca
veio a realizar-se! Quando telefonei
para a Pensão tive a triste notícia;
O meu menino faleceu! Era a voz
comovida da dona da Pensão! Era
assim que tratava o Pimentel, que
foi funcionário da Segurança Social!
Isto nos anos 90! Que o destino que
um ex-aluno da "minha" Escola,
também de Vila Real, de apelido
Pitrez Pimentel, mas não da família,
quando o visitei, a meu pedido foi
comigo a Borbela, a poucos
quilómetros de Vila Real. Perguntei
a uma Senhora onde morava a família
do Ribeiro Pimentel, e para surpresa
minha, estava a falar com a irmã!
Moravam mesmo ali numa bonita casa
em granito, no Largo da aldeia! Foi
um momento difícil para mim, pois de
lágrimas nos olhos, recordei dos
‘heróis' da Companhia!
Muitos mais episódios tive com
ex-camaradas de armas, já na
"peluda".
Ficarão para outras memórias!
Cont.
José Leitão
CCav. 2752