Caro Senhor F. Guilherme
Antes de mais os meus respeitosos
cumprimentos.
Quero, desde já, agradecer-lhe, bem
como a seu pai e irmão, pela
simpatia com que me atenderam no
passado Domingo, quando, de certa
forma, anonimamente, me desloquei
até ao cemitério paroquial de
Galegos para um singelo preito a um
bravo ex-militar que honrou de forma
tão relevante a sua pátria e a sua
família.
Eu acho que tinha esta obrigação,
não só por isso mas também por uma
espécie de dívida de memória.
No longínquo 6 de Maio de 1970,
quando em Bissau, embarcávamos no
"Carvalho de Araújo" rumo a Lisboa,
depois do cumprimento da missão na
Guiné, fomos colhidos de alguma
surpresa quando, de cima, olhando
para o porão vimos (paralelamente) 4
urnas. Alguém nos confidenciou em
tom leve: são três majores e um
alferes.
A vivência da guerra ensinou-nos,
para estes casos, o respeito pela
contenção, pelo silêncio. Nunca
soube quem eram nem em que
circunstâncias teria ocorrido esta
fatalidade.
Graças este extraordinário
repositório de testemunhos de
guerra que é o "BLOG LUIS GRAÇA &
CAMARADAS DA GUINÉ" foi possível
clarificar esta interrogação que
transportei comigo. Chegámos a
Lisboa a 13 de Maio de 1970, nós e
também aqueles que tão generosamente
deram a sua vida por algo a que se
comprometeram pelo juramento.
O seu tio (e padrinho) foi um
exemplo de militar, segundo os
vários escritos e testemunhos. Como
o seu pai (irmão do Major Pereira da
Silva) me transmitiu, esta era a 3ª
e sua última comissão de serviço no
ultramar ( uma em Angola e duas na
Guiné). Estava, inclusivamente, já
combinado com ele que a sua (vossa)
casa iria ser inaugurada quando ele
chegasse. Esse acto não se consumou
e foi, pura e simplesmente,
suprimido para sempre.
Relativamente ao Blog "Luis Graça &
Camaradas da Guiné" ele é já um dos
trabalhos (online) (*) mais
exaustivos sobre a história da
guerra colonial na Guiné
(1963-1974), através de testemunhos
e documentos apresentados por
ex-combatentes (até mesmo de
alguns que militavam no campo
contrário) que se constituiram em
"Tertúlia da Memória da Guiné".
Em anexo envio-lhe uma listagem, dos
muitos documentos que têm vindo a
ser editados no blog, e que
continuam a crescer todas as
semanas.
Ao atingir-se a capacidade do
primeiro Blog, foi necessário
passar-se a um segundo, a partir de
02.06.2006.
Na listagem apresentada, existe uma
data à direita, a qual serve de
referência para encontrar o
documento - identifica a data em que
este foi colocado no blog.
Chamava-lhe à atenção para os
"posts" referidos na folha 2, do
documento Guiné - Blog.xls, que
intitulei de "Área Chão Manjaco" e
que reportam os documentos inerentes
à área de actuação do Major Joaquim
Pereira da Silva, como o "post"
CCCXIII, de 25 de Novembro 2005, da
autoria de João Varanda, que faz uma
abordagem ao triste acontecimento de
20 de Abril 1970, na picada Pelundo
– Jolmete.
E não resisto também a
transcrever-lhe outro texto
magnífico do então alferes João
Tunes, em comissão no Pelundo e que
teve o privilégio de conhecer e até
conviver com os três desafortunados
majores:
"Meto-me no
jipe e faço-me à estrada que liga
Pelundo a Teixeira Pinto (hoje
Canchungo).
...dá para encher os olhos com o
verde vivo do arvoredo cerrado e as
milhentas espécies de aves de muitas
cores...
...a zona é segura mas aqueles
sítios são magníficos para uma
emboscada. Olá se são.
...Os oficiais convidam-me para
almoçar, o que já contava. Aceito
com gosto. Malta porreira e com
pessoas que é um encanto conversar.
Para mais, em Teixeira Pinto, a
comida era óptima para os padrões da
colónia. Spínola tinha levado, para
Teixeira Pinto, a sua elite de
oficiais, na aposta de transformar o
"chão manjaco" num caso de sucesso
de adesão das populações à sua
política e de contenção da
guerrilha.
O comando era ocupado pelo Coronel
Paraquedista Alcino, um bonacheirão
e homem que muito sabia de guerra.
Abaixo dele, havia o Major Passos
Ramos, responsável pelas operações,
o Major Pereira da Silva,
responsável pelas informações
militares e o Major Osório,
condecorado com Torre e Espada e
várias Cruzes de Guerra, que era o
homem dos combates.
Na parte guerreira, vários oficiais
fuzas, todos eles recheados de
condecorações por bravura em
combate. A seguir ao almoço, havia
sempre um convívio relax no bar de
oficiais, onde dava para se
descontraírem as conversas, pondo-se
a escrita em dia enquanto se bebiam
uns (infindáveis) digestivos.
Não me diziam grande coisa os
oficiais de combate. Com eles, as
histórias andavam por repetição de
feitos em golpes de mão ocorridos
algures. Ainda por cima, agora
tinham pouco para contar, porque a
zona estava tranquila e as operações
especiais eram só de quando em vez
para os casos de haver informações
de movimentos entre bases da
guerrilha ou de infiltração desta
nalguma aldeia. Até se mostravam um
pouco nervosos com a inércia a que
estavam amarrados.
Um dos dois tenentes fuzileiros (ia
na terceira comissão na Guiné,
sempre como voluntário) dizia até
que, se aquilo continuasse assim,
não queria mais Guiné e ia mas era
oferecer-se como voluntário para o
Vietname. Ele gostava e queria
guerra. Ambos os tenentes fuzileiros
(Brito e Benjamim) haveriam de
fazer, mais tarde, outras guerras em
serviço spinolista como a célebre
sublevação de 11 de Março de 1975 e,
depois, entrariam nas operações do
MDLP sob a direcção de Alpoim
Galvão.
Quanto ao Major Osório, sempre de
t-shirt branca, pouco falava mas era
muito respeitado. Aquilo era gente
de acção e quando a não tinham,
cediam à espera tensa e ansiosa de
mais acção. Em resumo, eram
guerreiros em descanso forçado.
O Major Pereira da Silva, de enormes
bigodes revirados, não parecia um
militar. Mal enfiado dentro da
farda, o homem era um intelectual.
Falava todos os dialectos usados na
zona, conhecia de fio a pavio todos
os usos e costumes das tribos da
Guiné, andava sempre pelas aldeia a
completar os seus conhecimentos e a
farejar informações úteis. Em
colaboração com a Pide, dirigia a
rede de informadores e era o
negociador com os cisionistas do
PAIGC, dispostos a entregarem-se.
Era um comunicador excelente e um
homem completíssimo em cultura(s)
africana(s). Dava gosto ouvi-lo e
aprender com ele, tanto mais que
tinha, para com os africanos, uma
autêntica reverência cultural,
particularmente quando se tratava
dos manjacos.
O Major Passos Ramos era o crâneo do
comando militar. O pensador de toda
a estratégia e o homem que fazia as
sínteses do cumprimento da missão
para toda a zona.
Excelente conversador e homem culto,
o Major Passos Ramos irradiava
encanto e inteligência. Era um
oposicionista manifesto e assumido
ao regime e tinha, inclusive,
participado na Revolta da Sé. Quando
encontrava um miliciano chegado de
fresco ou vindo de férias, ele
imediatamente rumava a conversa para
as actividades oposicionistas e
pedia previsões sobre quando o
regime iria cair.Spínola estava
encantado com o andamento das coisas
no “chão manjaco”.
Tudo ia bem ou parecia andar. E os
oficias de Teixeira Pinto eram mesmo
a sua nata. Eram militares
profissionais de primeira água que
faziam a guerra o melhor que sabiam
e podiam. A meio da tarde, regressei
a Pelundo. Sem problemas. Apenas com
mais suor que aquele que tinha
levado na ida. Mas sem rolas, porque
faltara pachorra para caçadas.
Passado pouco tempo, desterraram-me
para o Sul da Guiné, onde a guerra
era bem mais quente. Efeito
subsidiário da pena de prisão de
três dias que apanhara por me ter
recusado a cumprir a ordem de um
Tenente-Coronel para bater num Cabo.
Fiz, então, a última viagem de jipe
do Pelundo até Teixeira Pinto para
apanhar o avião que me levaria, em
trânsito, até Bissau. Mas, antes de
embarcar no avião, não faltaram os
três majores na pista para darem
abraços de despedida (e de
solidariedade).
O adeus do major Passos Ramos foi o
mais emotivo porque tinha ganho uma
especial empatia comigo, alimentada
de cumplicidade política e de estima
pessoal. Ainda hoje me parece sentir
nas costas o toque afectivo das
palmas das suas mãos. Foi a última
vez que vi Pelundo e Teixeira Pinto.
E os três majores.
Já colocado em Catió, tive notícias
dos três majores e meus amigos.
Notícias que correram mundo.Toda a
guerrilha do PAIGC, no "chão
manjaco" e noutras zonas do norte,”
tinha decidido” render-se e passar
para o lado do exército colonial.
Era a cereja no cimo do bolo. Estava
tudo tratado até ao pormenor. Havia
fardas portuguesas já prontas para
os guerrilheiros vestirem logo que
chegassem a Teixeira Pinto e estava
tudo tratado sobre patentes e
instalações das famílias. Cada
antigo guerrilheiro teria casa e
comida e o soldo correspondente à
sua nova patente e em igualdade com
os militares europeus. Aquela seria
a grande vitória política e militar
do General Spínola. Precisamente na
altura em que quase toda a gente
considerava a guerra na Guiné como
já perdida.
Os guerrilheiros colocaram uma única
condição. Fariam a sua rendição em
plena mata, junto a Pelundo, mas os
oficiais portugueses que fossem
receber os guerrilheiros teriam de
comparecer desarmados. Como prova de
confiança. Várias fontes confirmam
que Spínola quis ir em pessoa
presidir à rendição e só foi disso
dissuadido no último minuto. A
delegação para aceitar a rendição
das forças do PAIGC foi constituída
pelos Majores e meus amigos Osório,
Pereira da Silva e Passos Ramos.
Foram ao encontro dos guerrilheiros,
ultraconfiantes, sem armas, num jipe
vulgar e sem qualquer escolta.
Felizes pelo sucesso iminente.
Chegados ao local de encontro, os
três majores foram retalhados a tiro
de kalashnikov e acabados de matar à
catanada. Sem dignidade e com
requintes de barbárie.
Spínola, o seu estado-maior e os
majores tinham-se enganado sobre o
PAIGC. A manha e a paciência dos
guerrilheiros tinha sido maior que
as tecidas pelas melhores
inteligências do exército colonial e
da Pide. Spínola perdeu os seus três
melhores oficiais na Guiné de uma
única vez. Eu perdi três amigos. Sem
honra nem glória".
Dos pormenores que gentilmente me
relatou desta trágica
ocorrência, constatam-se, por vezes,
uma ou outra ligeira divergência ou
omissão nas diversas crónicas sobre
o assunto.
Referiu-me:
- Ao chegarem ao local, o jipe com
os 4 oficiais foi "esburacado" com
dezenas/centenas de tiros.
Surpreendidos, os oficiais
envolveram-se em luta desesperada
e como que a quererem interrogá-los
para esta conduta. Aí, o confronto
desenrolou-se à catanada. A um dos
majores foi, sanguinariamente,
cortada a cara e o seu tio foi
neutralizado com uma catanada no
estômago. O outro major
ainda conseguiu fugir mas foi
apanhado 200/300 metros à frente.
Por fim deram, a cada um, um tiro
na cabeça.
- No dia seguinte, foi Ramalho Eanes
que procedeu ao levantamento dos
corpos. Li algures que esse
levantamento teria sido feito for
forças da CCAÇ 2586, sob o comando
do Ten. Coronel Romão Loureiro.
Como tem uma relação de amizade com
o Gen. Ramalho Eanes, se se
proporcionasse, talvez pudesse
averiguar isto, assim como tentar
localizar (através do Google Earth)
o sítio exacto (na picada
Pelundo-Jolmete) onde terá ocorrido
este acontecimento. Seria uma
informação importantíssima para esta
"memória da guerra da Guiné". Seria
nas proximidades do Pelundo ou de
Jolmete ?
- Também uma referência a Spínola
que não compareceu a este fatídico
encontro, não por prévia intuição ou
aconselhamento, mas porque dois dias
antes tinha sido chamado a Lisboa,
por Marcelo Caetano.
- Referiu-me o seu pai (Prof.
Primário Aposentado) que o irmão
(leia-se Major Pereira da Silva)
quando foi para este derradeiro
encontro (o décimo, creio eu) teve
um pressentimento que algo de mau ia
a acontecer e deixou escrita uma
carta à esposa com esse presságio. A
carta viria depois a ser entregue à
sua tia juntamente com o restante
espólio. Seria também interessante
saber se a viúva estaria concordante
com a sua publicação ou apenas a
parte onde refere esse sinal de mau
prenúncio. É um documento relevante,
pois pode ter um significado mais
profundo relativamente ao
desenvolvimento da Op. Chão Manjaco.
Também o seu pai me referiu a
possibilidade de me enviar, por seu
intermédio (e-mail) a fotografia do
Major Joaquim Pereira da Silva.
Para concluir, aproveito para lhe
enviar as fotografias que tirei no
cemitério bem como outra em que,
através do G. Earth, procuro fazer a
sua implantação dentro da Freguesia
de Galegos.
Igualmente, anexo outros documentos
relacionados com este trágico
desfecho da "Operação Chão
Manjaco".
Mais uma vez, agradecendo a vossa
gentileza, envio-vos um fraternal
abraço.
Afonso M. Ferreira Sousa
NOTA:
O Major Pereira da Silva, à data da
sua morte, tinha 38 anos (nasceu a 5
de Outubro de 1931), foi promovido a
Tenente-Coronel, a título póstumo
(*) Tendo como "manager do blog",
Luís Graça (Dr.) -
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/