Manuel da Silva, Alferes Mil.º
Atirador de Infantaria
Manuel
da Silva
Alferes Mil.º Atirador de
Infantaria, n.º 70928370
Comandante do
Grupo Especial Pára-Quedista 008
1973 > 1974
«VENCEREMOS»

Comandante de
Pelotão da 3.ª Companhia do Batalhão
de Caçadores 15
1974
«AD GLORIAM FAMA VOLAT»
Memórias
-
«Nos primórdios do ano de 1973,
acabei por ir parar como militar
(Alferes Miliciano GEP) ao
aquartelamento GEP do Mungári, mas
antes de lá chegar aconteceu o meu
baptismo-de-fogo.
A
coluna preparada de manhã muito cedo
em Vila Gouveia, progredia agora a
média velocidade, cerca de 40 km/h,
e tudo parecia estar a decorrer da
melhor forma.
Estávamo-nos a aproximar do
cruzamento da Macossa, uma região
onde o inimigo estava mais activo.
Não
me envergonho de vos contar que o
meu coração batia cada vez mais.
Ensaiava em pensamento o salto para
o alcatrão com a viatura em
movimento, porque olhando a mata
suspeitava dela e adivinhava os
perigos que escondia. Eis que
subitamente ouço uma forte rajada de
metralhadora logo seguida de enormes
rebentamentos. Parecia que a minha
cabeça estoirava com tanto estrondo.
O meu raciocínio paralizou por uns
momentos. Por um lapso de tempo não
sei o que se passou.
De
repente dou conta que estava
refugiado debaixo da viatura atrás
de uma das rodas.
Os
primeiros minutos foram dramáticos,
quase rebentava com os meus próprios
batimentos cardíacos. Embora em
pleno dia, parecia que tinha
mergulhado na escuridão. A minha
ligação com o mundo foi através dos
gritos do Furriel GE Marques:
"Filhos da puta, oh turras duma
figa, venham cá seus cobardes".
Recuperado e verdadeiramente
consciente que tínhamos caído numa
emboscada, coloquei-me em posição de
tiro atrás da roda, mas eu não
falava e muito menos gritava.
Depois, a rastejar, cheguei à beira
da estrada, num ponto onde me sentia
simultaneamente protegido e bem
colocado para disparar, pois havia
ali à minha frente um enorme morro
de muchém (salalé).
Disparei três dilagramas com a minha
G3, seguidos e apontados de forma a
poderem cair e explodir longe em
locais distintos, dentro da mata, de
onde vinham as rajadas do inimigo.
Rebentaram os dilagramas e pararam
as rajadas. Esta minha acção mereceu
uma crítica dos militares do grupo
de protecção/perseguição da coluna
militar, que me acusaram de ter
quebrado a disciplina de combate do
grupo de protecção/perseguição, que
tinha por missão a protecção daquela
coluna que nos transportava de Vila
Gouveia ao Guro.
Este
foi o meu baptismo-de-fogo.
A
coluna retomou a sua marcha e nessa
noite ainda pude chegar ao
aquartelamento GEP do Mungári.
Naquele momento com cerca de 23
anos, estava eu pronto e mentalizado
para empunhar armas e avançar no
terreno numa perspectiva ofensiva e
defensiva e num raio de cerca de 40
kms com centro no lugar de Mungári.
A
ofensiva visava ir com o meu grupo
de combate para o interior através
das zonas ocupadas pelos
guerrilheiros da Frelimo, zonas
estas que eu não conhecia, mas que
iria procurar identificar nas cartas
militares a partir das informações
que nos iam chegando a partir da
DGS.
[...]
Pelo
meu lado e do meu grupo de combate,
foram muitas as operações com muitos
sofrimentos e sempre com perigos
para as próprias vidas, mas a
operação mais significativa para
mim, naquela zona, decorreu em
Agosto de 1973, quando fui chamado a
realizar uma operação com alguma
envergadura em que o objectivo mais
importante era atacar um "foco":
isto é, uma base da Frelimo onde
estaria acolhida uma população de
100 pessoas enquadradas por 16
guerrilheiros armados, havendo
algures na base bastante material de
guerra escondido.
Para
a referida operação, duas viaturas
em marcha lenta (com 43 militares)
saíram de Mungári em direcção ao
Lundo (rio Zambeze) no norte, em
velocidade reduzida e com os faróis
desligados para assegurar a surpresa
necessária.
As
duas viaturas, que transportaram de
Mungári a mim e cerca de metade (43
homens) do meu grupo de combate, o
GEP008, recomeçaram a progressão a
partir da Mteme, como se impunha,
cerca da meia-noite; com as luzes
desligadas e a uma velocidade
muitíssimo reduzida acompanhados por
dois guias.
De
acordo com a carta militar, as
viaturas da Mteme passavam ao
Nhaugôno, depois a Simbe, a seguir a
Chatessulê, depois a Miguel e
finalmente ao Lundo (sempre ao longo
do rio Muira, afluente do Zambeze).
Azar
o nosso, a partir de Simbe a picada
estava traçada de abatises (árvores
cortadas e atravessadas na picada).
A existência das abatises foi
interpretada como tendo sido uma
não-revelação e por conseguinte uma
ocultação dos guias.
As
viaturas não mais progrediram,
tiveram que regressar à Mteme e
consequentemente nós os militares
fomos deixados a caminhar a pé ao
lado da picada.
Era
já manhã e os galos cantavam; o sol
rompia no horizonte e como era
Agosto o tempo apresentava-se
bastante fresco. Deparámo-nos então
com umas palhotas de onde se soltava
fumo branco próprio de quem ali
estava e queria aquecer-se ou
cozinhar.
Não
tínhamos essas palhotas na lista das
revelações e isso foi considerado
como a segunda ocultação do guia.
E os
malditos cães (sempre os cães) deram
com a presença da nossa tropa!
Contornámos depois a pequena
povoação de Miguel e preparámo-nos
para o pior; e o pior era um ataque
eminente, pois a nossa tropa com
toda a certeza já tinha sido
detectada pelo inimigo.
Avançámos no terreno, um pequeno
altio, até que encontrámos um local,
aparentemente seguro, para descansar
e montar a nossa segurança: um cabo
montava e apontava a sua HK21 e
outro cabo apontava o morteiro 60,
consideradas as armas mais pesadas
ainda assim possíveis de ser
transportadas por um só homem.
À
medida que o dia ia abrindo e com o
auxílio do guia (de pouca
confiança), também começámos a ver
ao longe um outro local que era
constituído por algumas palhotas
aparentemente abandonadas e cercadas
de vegetação pouco densa, o que era
ou poderia ter sido uma base
desactivada e que o guia nos
revelara ser a única que conhecia.
Havia
contudo uma floresta bem densa que
se situava à frente e a mais de cem
metros de distância.
Resolvemos então avançar para as
palhotas aparentemente abandonadas e
nada confortáveis, devido à
quantidade de bicharada que as
infestava.
Surge
um ataque da Frelimo e o local onde
nos encontrávamos passou a ser
varrido por rajadas de metralhadora.
Pior
que isso, estávamos a ser empurrados
para a zona da floresta mais densa
atrás referida, que ficava num
baixio. Obviamente disparávamos para
o local de onde vinha o ataque.
Quando chegámos à zona de floresta,
os disparos do inimigo começaram a
amainar, até que se calaram.
Esta
floresta escondia na verdade o
"foco", a verdadeira base que tinha
sido abandonada momentos antes e à
pressa.
Com o
capitão ao meu lado, mandei de
imediato reunir os militares do
GEP008, a fim de avançar e fazer o
levantamento do espólio da base
(número de palhotas, o que
continham, etc).
Momentaneamente perdi o controle da
situação, pois os nossos soldados
passaram a uma rapina que eu próprio
não esperava.
Éramos 43 e tive a sensação que
metade conseguira juntar bicicletas,
roupas, panelas, galinhas; enfim,
indescritível.
Mas o
inimigo foi reforçar-se e voltou à
base, agora ocupada pela nossa
tropa.
Passado pouco tempo, surge-nos uma
barragem de fogo do inimigo, de tal
modo forte que nos impediu a
progressão.
Dentro da base não havia capim e
estávamos ali expostos ao fogo do
inimigo, embora resguardados pelos
troncos das árvores. As balas eram
tantas que, no embate com o solo
vermelho da base, levantavam tanta
poeira, que, associada aos raios
solares intensos por entre os ramos
das árvores, nos dificultavam
enormemente a visão.
Seriam cerca das dez horas da manhã.
A barragem de fogo do inimigo era
tão grande que dei ordens para
disparar só com alvos à vista, para
não gastar munições que, mais tarde,
nos poderiam ser preciosas. Ali
estivémos debaixo de fogo contínuo,
que não deixava avançar um
centímetro que fosse.
E
para estupefacção minha, a
quantidade de fogo continuava a
aumentar, a um potencial que nunca
imaginei e que ameaçava cercar todo
o grupo.
Apercebi-me do perigo que a situação
representava e, cerca das onze
horas, pedi apoio aéreo para a
situação, porque tivemos a noção que
estávamos no coração da base e já
cercados.
Lá
continuamos no local, sem poder
avançar fosse para onde fosse, mas
as ordens para gastar o menos
possível as munições foram
cumpridas.
Continuando a aguardar o apoio aéreo
solicitado, chegaram helicópteros
que do solo passaram a ser
conduzidos por nós e
consequentemente metralhar com os
seus canhões o local onde o inimigo
fazia a barragem de fogo contra nós.
Naturalmente o inimigo foi obrigado
a parar e pôs-se em fuga.
Pensámos, por uns momentos, na forma
de fazer uma retirada bem sucedida e
declinei a perseguição ao inimigo,
pois estávamos exaustos e com enorme
défice de munições.
Todavia era absolutamente necessário
descobrir quanto antes o local ou
locais onde estavam guardadas as
armas do inimigo na base.
Foi
fácil de encontrar, pois aquele era
um abrigo redondo subterrâneo com
uma grande boca, tapada com uma
tampa igualmente redonda feita de
ramos entrelaçados e capim.
Rapidamente retirámos as armas e os
equipamentos, as munições e livros
vermelhos com doutrinas comunistas.
Retirámos da base logo a seguir, a
passo apressado, pelo lado oposto ao
da zona de ataque do inimigo; e os
nossos soldados, em vez das
bicicletas, passaram a transportar o
espólio da base que valeu ao Capitão
Fernandes um louvor (merecido, pois
ele era entre nós o mais graduado,
sendo eu imediatemente abaixo com a
posição de alferes). Mais tarde li
numa revista militar onde se fazia
referência ao GEP008, como tendo
atacado uma base na região do
Mungári e recolhido armamento
diverso do inimigo, com êxito total,
pois ninguém morreu ou saíu ferido.
[...]
A
Coutada de Caça nº13 albergava um
ecossistema riquíssimo, que muito
beneficiava a existência de um leque
muito variado de fauna bravia. A
empresa turística Safrique fez
instalar, nesta região dos distritos
de Sofala e Manica, quatro
acampamentos: Pompué, Inhassalala,
Boeza e Demera. Porém, o esforço da
Frelimo em direcção a Vila Pery e
Beira, levou ao abandono da Coutada
nº13. Foi em Inhassalala que veio
instalar-se o destacamento GEP008
por mim comandado.
A
partir de Inhassalala, e por cerca
de um mês, passei a desempenhar
missões operacionais e de
intervenção, especialmente
vocacionadas para acções de
recuperação, defesa e controlo das
populações.
Apesar de tudo e pelo meu lado e do
meu grupo de combate, mesmo assim
foram realizadas aqui muitas as
operações com muitos sofrimentos e
sempre com perigos para as próprias
vidas, tal como havia acontecido
noutros locais onde eu já tinha
estado.
[...]
No
aldeamento de Zangaia (sul da ZOT,
gentilicamente conhecido por
Capalaútsi), o nosso destacamento
encontrava-se num dos lados, com a
pista pelo meio. Aquela população
viria a manter uma excelente relação
com os militares do GEP008. No
entanto nunca esquecerei que no
primeiro dia, quando a pequena
coluna de viaturas que nos
transportava do Sabondo para aquele
local afim de ali podermos montar as
nossas tendas de campanha, fiz muita
questão que o grupo de picadores
fizesse o seu trabalho até dentro do
aldeamento, quando me foi proposto
que não valia a pena continuar a
picar pois separávamo-nos apenas um
rio quase seco, cujas areias eram
permanentemente pisadas pelos
animais domésticos e pela população,
que só por si era motivo mais que
suficiente para se pensar que não
havia mais minas a partir daquele
ponto. Não aceitei e fiz questão que
o grupo fosse rendido. O novo grupo
avançou a picar em direcção ao
aldeamento e uns passos à frente
localizou uma mina anticarro. Como
era normal, procedemos imediatamente
à sua neutralização, remoção e
destruição. Na verdade, tratava-se
de uma mina que tinha por baixo uma
bomba das lançadas pelos nossos
aviões e que não tinha explodido.
Uns
dias mais tarde, numa operação desci
com o meu grupo à margem esquerda do
Zambeze e antes do entardecer o sol
radiante passou subitamente a uma
noite escura, despontando no
horizonte a lua muito brilhante.
Estávamos na noite de 11 de Novembro
de 1973: os meus militares tossiam
muito, devido ao frio e às chuvadas
apanhadas durante os dias e noites
anteriores; o resultado que nos
aguardava, seria o de sermos
localizados facilmente, pelo que
ordenei a interrupção da operação e
regressámos ao destacamento em
Zangaia.
Durante a caminhada, detectei a
curta distância uma chama que
iluminava o caminho a um grupo de
pessoas que caminhava
descuidadamente ao nosso encontro.
O
trilho que pretendíamos seguir
estava perfeitamente localizável na
carta militar e dava garantias de
virmos do Zambeze directamente a
Zangaia, onde devíamos chegar no dia
seguinte depois de uma longa
caminhada.
Naquela noite eu vinha em primeiro
lugar da coluna e devido à curta
distância entre mim e o archote,
estava a proporcionar-se um
frente-a-frente inesperado. Mal tive
tempo de saltar e correr para o meu
lado direito e proteger-me atrás de
uma enorme rocha, podendo dali
enxergar o grupo e seu archote que
vinha a aproximar-se. Os meus
militares - que em fila caminhavam
atrás de mim -, no entanto
recolheram para o lado oposto, pelo
que fiquei na sua linha de fogo. O
tal grupo - mulheres trazendo à
cabeça uma espécie de pequenos paus
alongados amarrados à volta e que
caminhavam guiadas por duas mulheres
armadas -, quando se encontrava a
uns 10m de distância, gritei:
“Parem!”. Não pararam e correram em
frente, continuando no mesmo trilho
que já vinham seguindo, talvez
pensando que estaríamos todos
concentrados no local de onde
partira a minha ordem. Resultado:
correram para a zona de morte; ao
passar defronte aos nossos
militares, que estavam no chão em
posição de atirar a matar, com tanto
poder de fogo não foram poupadas.
[...]
Eu ia
em terceira posição na coluna
quando, por volta das 09:00 horas,
ouço alguém a pedir para parar,
alegando haver um militar caído. Fui
atrás e chamei o enfermeiro: este
cuidou do militar, ajudámos a
estendê-lo no solo e cada um cedeu
um pouco de água para o confortar,
pois estava muito aflito.
Apercebi-me que a dois outros se
havia acercado um ataque de pânico e
decidi pela sua saída do grupo de
combate, com direito a que
regressassem ao quartel de Sabondo
acompanhados por outros três
militares.
Ao
mandá-los de volta ao quartel
dispensando três soldados dos mais
experientes, fiquei com o meu grupo
reduzido a quinze para levar a cabo
a operação.
Comuniquei via rádio com o major
mandante daquela operação, que por
sua vez mandou outro grupo a partir
do quartel ao encontro dos seis que
eu tinha mandado de volta, enquanto
eu prosseguia em direcção ao
Zambeze, conforme o planeado.
Passados três dias, com muitas
peripécias pelo meio, regressei ao
quartel.»
