Por Leonardo Ralha
No
fim de março de 1964 havia um ferido ou doente que tinha de ser retirado
de Micula. Descolei do aeródromo base nº 3, em Negage, no norte de
Angola, onde era cabo especialista mecânico de material aéreo há dois
anos, e o piloto desviou a rota devido às nuvens. Ao percebermos que as
árvores estavam muito próximas, já não conseguimos subir.
O furriel piloto José Alberto Simões deslocou a clavícula, e eu fiquei
com a tíbia ferida. Ouvimos aviões por cima, mas o céu estava coberto
por uma cacimbada tremenda. Arrancámos de manhã, eu com a carabina, ele
com a pistola, levando a bússola e um mapa. Estávamos relativamente
perto do aeródromo.
Três dias depois, chegámos a uma zona de capim. Chovia muito, e fizemos
um abrigo, onde nos enfiámos. De manhã passou um avião Dornier e
disparámos o very-light. Deu a volta, mas foi embora. Pouco depois,
vimos duas negras, que fugiram. Subimos a um monte, a pensar que nos
podiam levar até à tropa, e ficámos assustados com a malta do FNLA que
nos cercou. Disseram para nos entregarmos, mandaram rajadas e uma
granada. O furriel disse para dispararmos e guardarmos uma bala cada um.
"Tem calma. Mortos é que não fazemos nada", respondi-lhe
Não houve outra solução que não fosse levantar os braços. Só nos
deixaram as calças. Na sanzala fui recebido por uma mulher que me
espetou duas galhetas. O chefe deles fechou-me um mês numa cubata.
Levavam-me mandioca amassada e enrolada em folhas, um bocado de feijão e
os ratos que apanhavam e assavam na fogueira. Bastou para me aguentar.
ENTREGUE NO CONGO
Disseram que íamos para o Congo, e a verdade é que o Simões voltou. Mas
vinha com paludismo e morreu na noite de 28 de maio. Também fiquei
doente, só que um deles fora enfermeiro no Exército e deu-me uma
injeção. O chefe, chamado Domingos, arranjou uma galinha, mandou cozer,
e fez-me um caldo com muito piripíri. Cheguei a ter 40,5 graus de febre,
mas oito dias depois voltei a andar.
Em julho de 1964 entrámos no Congo. Fui recebido pela multidão, e posto
em cima de uma mesa, em baixo de um embondeiro. "Vão aproveitar para me
enforcar", pensei. Em vez disso, o líder deles levou-me para uma cubata,
e falámos em português e francês. Comi feijão vermelho com carne de
pacaça, a melhor refeição em três meses, e vinho de palmeira.
No dia seguinte, um jornalista, o chefe da polícia e o administrador de
Singololo levaram-me para a cidade. Fiquei em casa do chefe da polícia,
que me ofereceu brandy e latas de conserva. À noite veio um português,
Alípio de Oliveira, que tinha uma oficina. Jantámos arroz de marisco em
casa dele, e disse-me que eu iria embora. Fui de manhã, de automóvel,
com o jornalista e o administrador. Passámos por Matadi e, já em Angola,
parámos na PIDE em Nóqui. "Tens aqui o teu homem", disseram ao chefe do
posto, que me recebeu com um abraço. Ficou estupefacto, pois julgava que
eu morrera e o Simões estava vivo. Aterrei em Luanda nesse dia, e o
irmão do furriel, que movera influências, não me visitou.
A comissão terminava em agosto e o comandante deu-me férias. Disse-lhe
que preferia dá-la por terminada. Soube que, estando dado por morto, os
meus familiares vestiram-se de luto e rezaram missas pela minha alma.
Albertino Domingues Góis
COMISSÃO: Angola, de 1962 a 1964
FORÇA: Aeródromo Base nº 3, em Negage
ATUALIDADE: Aos 73 anos, regressou com a mulher há 14 anos dos EUA, onde
ainda vivem três dos seus quatro filhos. Tem sete netos e uma bisneta

