ANGOLA
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sites próprios
Tenente-Coronel Armando Maçanita
«Diziam que
eu não tinha medo. Bem, fartava-me de ter medo, mas tinha que dar o
exemplo. Não acredito em indivíduos que não têm medo, só se forem
inconscientes.
Eu tive sempre a preocupação, desde o princípio, de
estabelecer entre mim e os meus soldados um laço de amizade muito forte.
O que mais contava eram as pessoas. Ali não havia valores, havia as
pessoas.
Eu tinha 44 anos, eles tinham 20 e 21, a não ser os capitães e
os alferes, que andavam nos 24.
E estabeleceu-se um contacto e uma
amizade de tal forma que tornou este batalhão invencível.»
Palavras do
Coronel de Infantaria Armando Maçanita,
texto:
"A Guerra de África", 1.ª ed., de 18Jul1995
vídeo: de
Tiago Light My Fire - Portuguese Colonial War
footage,
in youtube
Muitos
dos homens do Batalhão 96, ao qual coube a reocupação de Nambuangongo,
continuam a reunir-se todos os anos, com as suas famílias, em nome da
solidariedade forjada no quotidiano da guerra. O coronel Armando
Maçanita comandou o Batalhão de Caçadores 96. Recorda como as suas
tropas romperam um cerco da UPA. No embate morreu Maneca Paca,
guerrilheiro lendário. Maçanita fala de si e do batalhão, da assistência
médica a brancos e negros e da importância da reconquista de
Nambuangongo.
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Houve um grupo de combate que foi atacado por uma
multidão de negros. Eram para aí mais de mil, armados de catanas, lanças
e uma metralhadora ligeira que apanharam a um grupo nosso. O general
Libório tinha distribuído pistolas-metralhadoras e granadas de mão aos
colonos do distrito. Fui com as minhas companhias e quando chegámos mais
ou menos ao contacto o que é que vimos? Uma mole humana a formar um
círculo. Nós devíamos ser só uns cento e vinte homens. Lembrei-me do
Mouzinho de Albuquerque e pensei: «Estes tipos querem cercar-nos. Vamos
lá fazer aqui um quadrado sem um lado de trás.» E pedi ao Grilo a
metralhadora ligeira. O Grilo era um dos rapazes que andavam sempre ao
meu lado. Pus a metralhadora a tiracolo e pedi-lhe os carregadores. Eles
já estavam quase a cercar-nos e eu disse: «Vamos avançar para eles.»
Claro que, à medida que avançávamos, e como íamos mais ou menos todos
juntos, íamo-nos cercando uns aos outros. Mas embora aquilo não fosse de
espingarda automática (era a Mauser), o certo é que eles iam
mesmo disparar. Como
eu
ia à frente, de pistola-metralhadora, com uma rajada derrubei o Maneca
Paca, um negro, não sei de que etnia, com um metro e noventa de altura.
O Maneca Paca era uma bisarma formidável e tinha um prestígio muito
grande entre aquela gente. Com um sopapo daquele gajo desaparecíamos
todos... Quando se ouvia falar do Maneca Paca toda a gente tremia logo.
E foi morto nesse combate, por mim. A guerra é uma coisa horrível.
Avançámos a descoberto, como o Mouzinho,
e
lá vinham as balas. O cabo Lima, que é agora proprietário em Viana do
Castelo, dizia: «Esta passou perto.» Estávamos ali numa reunião de
comandos e ele repetiu: «E esta aqui também passou perto.» O capacete
dele ficou com um buraco do lado direito. O que é certo é que eles
fugiram, debandaram e deixaram lá o Maneca Paca, morto. Viemos a contar
ali onze, depois mais dois que estavam dentro de uma sanzala abandonada.
De forma que foram treze. Eu perdi o cabo Grilo, mais um soldado, foram
sete feridos graves para Luanda e fiquei com mais quinze feridos
ligeiros. Depois morreu um pelo caminho, de modo que tive três mortos.
Nós não ficámos sem Angola porque na tarde do dia 9 de Agosto, uma
semana antes já estava tudo preparado nas Nações Unidas para reconhecer
a República de Angola, chegámos a Nambuangongo. Já estava tudo arranjado
pelos barões do petróleo americano. Não estou a tirar valor ao Governo
americano, estou a referir-me aos homens do petróleo. Mas depois de
ocuparmos Nambuangongo já tínhamos outra vez Angola. Diziam que eu não
tinha
medo.
Bem, fartava-me de ter medo, mas tinha que dar o exemplo. Não acredito
em indivíduos que não têm medo, só se forem inconscientes. Eu tive
sempre a preocupação, desde o princípio, de estabelecer entre mim e os
meus soldados um laço de amizade muito forte. O que mais contava eram as
pessoas. Ali não havia valores, havia as pessoas. Eu tinha 44 anos, eles
tinham 20 e 21, a não ser os capitães e os alferes, que andavam nos 24
anos. E estabeleceu-se um contacto e uma amizade de tal forma que tornou
este batalhão invencível. Veja que 33 anos depois estivemos ali
sentados, outro dia, à mesa do almoço, 403 pessoas, familiares dos
soldados e tudo. E todos os anos nos juntamos. Para o ano vai ser na
Guarda [...] Para mim não aparecerá tão cedo em Portugal outro homem
como o Salazar. Mas não tenho nada que ver com a política nem com os
políticos. Um militar de carreira não pode ser político porque a
política é um pântano que basta passar-se por lá para se ficar com mau
cheiro. E um militar, quando jura pela sua honra
defender
a Pátria e a Nação, mesmo com sacrifício da própria vida, não pode de
maneira nenhuma armar em político.
Não tínhamos informações praticamente nenhumas, não sabíamos de nada do
que estava a acontecer. Fui mobilizado, cheguei a Luanda e fui chamado
ao quartel-general. Havia dois batalhões que já tinham ido para o Norte.
Depois foram mais dois batalhões, o meu e o do tenente-coronel Ponte,
que foi para Nóqui e nós fomos contra a UPA. Suponho que foi já aí que
recebemos a ordem para a Operação Viriato. O objectivo era reconquistar
Nambuangongo o mais depressa possível. Desde Março que não tínhamos
Nambuangongo e tudo aquilo estava nas mãos dos terroristas.
Perguntávamo-nos a nós próprios: como é que a gente vai chegar lá? O
certo é que
se
chegou, com vários combates pelo caminho. Lembro-me que o major Silva
Sebastião, agora coronel, que era governador de distrito, convidou-me
para almoçar. A certa altura, eu estava ao lado dele, tínhamos as
fotografias de cadáveres cortados com catanas. Numa via-se uma senhora
com um pau espetado na vagina, toda cortada de catanadas nas pernas e
semidegolada, sem uma mama. E disse um dos médicos, que estava ao meu
lado: «É por causa disto que eu e os meus colegas nos
recusamos
a ir lá acima ao Norte assistir à caça aos pretos.» E eu perguntei:
«Então e aqui mesmo vocês não vão assistir a uma pessoa de cor?
Desculpe, eu se estivesse no seu lugar se calhar estava a reagir como o
senhor doutor. Mas, como sou de fora, eu considero que tanto o senhor
como os seus colegas deviam pedir uma licença ilimitada, sem perderem o
lugar, iam até Portugal continental, eram substituídos por outros
médicos que não se chocassem com os acontecimentos e fizessem o seu
trabalho.» Eles disseram: «Vamos a ver como é que o senhor
tenente-coronel vai pensar daqui a uns dias.» E eu respondi: «De certeza
que não vou pensar como o senhor está pensando. O senhor tem que tratar
dos brancos e dos pretos. Eu é que tenho de combater os terroristas!»
Quando saí dali fui falar com os médicos do meu batalhão e perguntei:
«Vocês são capazes de tratar dos negros
desta
região como tratam dos brancos?» Eles disseram: «Sim, sim, meu
comandante. Então porque não?» Dei um jeito e fui à missão dos Dembos,
perto de Luanda, a uns trinta ou quarenta quilómetros, falei com o
chefe, um padre holandês, e perguntei-lhe quantos soldados tinham ali.
Eram 43 soldados. «Têm doentes cá dentro?», perguntei. Ele disse que
tinham muitos e que não tinham assistência médica porque depois dos
acontecimentos do Norte nunca mais os médicos tinham ido lá. E eu
perguntei:
«Se porventura eu viesse cá com os meus médicos podia juntar aqui os
seus doentes todos?» Ele ficou a olhar para mim e perguntou: «Mas o
senhor comandante mandava aqui os seus médicos?» Eu disse que ia com
eles. Entretanto aproximou-se um padre português, adjunto dele, a quem
eu disse para irem os dois almoçar comigo no dia seguinte na base de
Santarém, onde estava aquartelado, e perguntarem aos meus homens o que é
que aconteceria se me
atacassem
pelo caminho. Sabe o que é que eles disseram? Que iam logo arrasar a
missão e ninguém ficava vivo. «Ainda quer que venham cá e eu venha com
eles?», perguntei. E eles disseram que com certeza, que garantiam que
não me acontecia nada. E na segunda-feira lá estávamos nós. Aquilo era
um edifício grande, com rés-do-chão e primeiro andar e uma cerca à
volta, do tamanho de um campo de futebol. Então estava uma mole de gente
de parte e estava outra por detrás. Com umas tiras de pano tinham feito
uma bandeira nacional, que uma série de gente segurava por detrás dos
doentes. E os meus quatro médicos começaram logo a observar. Estava o
meu cabo Lima. O Grilo morreu num combate muito grande, combates desses
só tivemos mais dois. Estou convencido que o comandante dos Dembos deu
ordem para não me matarem. As minhas viaturas passavam sozinhas e nunca
ninguém as atacou depois desse tal combate dentro do território dele. Se
passasse uma companhia inteira eles atacavam, mas o meu batalhão nunca
era atacado.1 ------------------------------------ 1 Testemunho oral:
Armando da Silva Maçanita. Lisboa, 26 de Setembro de 1994.