MOÇAMBIQUE
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sites próprios
Francisco José Branquinho de Almeida
Furriel
Miliciano e Alferes
Graduado
GE 201
Cabo Delgado
- Moçambique
Agosto de
1968 a Janeiro de
1972
"Floresta
de Sangue"
Um "conto"
escrito em SET1975
NOTA PRÉVIA
Escrevi este
"conto" em Setembro de 1975.
O reduzido
afastamento temporal dos factos narrados implicou um
reviver de situações que passaram ao papel como
quadro fresco, com as pinceladas de ficção mínimas,
as bastantes para não identificar protagonistas,
tendo em conta o melindre dos factos e perspectiva
do narrador na época da publicação.
Admito mesmo que
hoje este conto teria outros cambiantes, ou não
passaria mesmo da memória do autor.
Sem qualquer pretensão
literária, reproduzo-o agora, em humilde dedicatória
e com o pensamento nos que, de alguma forma, viveram
ou se revêem nas situações narradas, em especial
naqueles a quem a má fortuna não permitiu lerem
estas linhas...
Floresta de Sangue
Para visualização dos conteúdos clique em cada
um dos sublinhados que se seguem:
I -
1971. Moçambique/Norte. Manhã de cacimbo fresco.
Folhas ...
II
- O silêncio doía muito! Aquele "silêncio" ...
III - Eram já 10 da manhã do outro dia. Mais cinco
horas ...
IV
- Não tinham aqueles homens, já bastante
identificados ...
V -
Foram eles que deram o primeiro tiro, meu
alferes. O Amisse ...
VI
- A noite marcou-lhes encontro quando já procuravam
local próprio...
VII - As três da tarde surpreenderam o Carrilho com
o Bazuca ...
VIII - Meu alferes, lá vêm os passarinhos! -
informou o Amisse,...
IX
- Vocês não sabem que é crime abandonarmos um homem
ferido, ...
FLORESTA DE SANGUE
I
1971.
Moçambique/Norte. Manhã de cacimbo fresco. Folhas de
cajueiro velho, perdido na mata, choram gotas de
orvalho na picada estreita de matope enrijecido
pelas tardes quentes. Perto, aves sinistras lançam,
a espaços, silvos irritantes por entre centenários
embondeiros.
Nada mais se
ouvia ao redor. A noite acabava fria, silenciosa e
calma, não fora uma gazela atrevida infiltrar-se, em
desenfreada correria, cortando o círculo, por entre
as três dezenas de fardas negras que, em alvoroço,
viram o seu fraco repouso interrompido, num bater de
coração mais forte, num aperrar de armas tão nervoso
quanto inesperado.
Era um novo dia
que rompia, um novo dia que até nem contava. Era só
mais uma data, apenas, para rapazes já homens, a
quem o dever não permitia calendário de vida. O de
morte também podia servir para a contagem
indiferente de uma manhã que surge numa floresta sem
horizonte.
O Comando havia
sido claro na ordem que transmitira. Aquele grupo de
homens, fracção duma força de combate estacionada
algures no Norte de Moçambique, teria por missão
interceptar um grupo inimigo, fortemente armado, que
dias antes atacara e saqueara um aldeamento de
nativos. O resto era com eles. A zona conheciam-na
bem, os perigos não contavam e o medo não era o
melhor conselheiro para quem queria conservar a
"pele" naquela guerra traiçoeira onde, por vezes,
era imperioso "dar" primeiro.
O alferes
Carrilho que, com dois furriéis e enfermeiro eram os
únicos europeus entre homens de rostos bronzeados,
nados junto ao Índico, dava as últimas instruções ao
grupo, antes da partida para o terceiro dia de
marcha. Os sacos de campanha, acomodados sobre as
fardas húmidas e sujas, haviam já sido aliviados de
algumas latas de conserva de porco, gordurosas, que
só o negro Manjate, fruto recente das Missões
cristãs, comia. Os outros, por Alá, nem
cheirá-las...
Mais leves, olhos
já lavados no orvalho do capim alto, em fila
espaçada, aproximavam-se já dum trilho batido,
detectado na véspera pelo pisteiro Capoca, um
recuperado à Frelimo, a que nada escapava. Por isso,
lhe chamavam "o Perdigueiro".
Ali mesmo fora
decidido montar a emboscada. O inimigo, com o saque
e elementos da população raptados, poderia escolher
aquele itinerário para a retirada mais para norte,
para recônditos e mais seguros refúgios, em região
onde se pensava estar implantada a Base Manica.
E, quando os
cortantes raios de sol tropical já rasgavam as copas
frondosas do arvoredo, os homens de negro,
espalhados por entre os arbustos, aguardavam
silenciosos. Esperavam na incerteza....mas
esperavam. Afinal, aquela até era uma guerra de
espera.....espera de um final que tardava em
acontecer e o último capítulo daquela rude aventura
de anos era uma assustadora incógnita....
II
O silêncio
doía muito! Aquele "silêncio" era duro! Via-se
no rosto do comandante. Ele próprio preferia
gritar bem alto. Ouvir o eco da sua voz lançado
pelos rochedos soltos. Queria gritar que não
queria a guerra, mas que não tinha medo. Talvez
para assustar esse mesmo medo. Queria não pensar
em nada, automatizar-se, mas aquele marasmo de
silêncio, que já durava horas, punha-lhe o
cérebro mais desafinado que a barulhenta
fanfarra do Batalhão.
Nada mais
aconteceu naquele dia que desse outra cor àquele
quadro vivo de corações enervados.
Com o cair
da tarde, o alferes incumbe o Ferreirinha, um
baixinho furriel europeu, quase no fim da
comissão, da retirada para pernoita. Impunham-se
cuidados especiais neste "mudar de sítio": o
local onde haviam pernoitado na véspera não
servia. Nem em tal pensar! "Por o periquito
nunca mudar de ninho é que lhe roubam os
filhos", dizia o Ubisse, um homenzarrão negro
que não largava a metralhadora mais pesada do
quartel.
E foi
afastado da zona, o novo local de pernoita que,
afinal, não era diferente: as mesmas árvores, o
mesmo pouco céu, a mesma terra seca, os mesmos
pássaros e, até, os mesmos semblantes sofridos
do pessoal.
- Meu
alferes, isto já não dá nada! Quase não há
ração, a água é pouca e os "turras" já passaram
por outro lado!
Este era o
estribilho do enfermeiro Correia, um dos poucos
europeus do grupo. Estribilho que, mais uma vez,
ensaiou aos ouvidos do Carrilho, já habituados
aos alvitres conselheiros do cola-adesivos lá da
malta.
E, quando
o alferes lhe retorquiu não se poder retirar sem
a certeza de que o inimigo havia passado para
norte, lá foi o Correia, coçando o barrete
salpicado de mercúrio, embrulhar-se por entre as
ligaduras e bebericar a água a que ele, para
desinfectar, dizia, juntava álcool. Só que o
mordaz Sacura afiançava que o Posto de Socorros
estava quase todo na barriga do Correia!....
III
Eram já 10 da
manhã do outro dia. Mais cinco horas eram já
passadas daquele dia em nova espera. De novo o
silêncio, de novo a quietude ansiosa de outra
emboscada junto trilho adversário.
- Isto é
demais, meu alferes! Que se lixem os turras! Já
nem água tenho, quando é que isto acaba?
–sussurrava interrogativo o furriel Bazuca, um
minhoto novato, dois meses antes largado pelo
Niassa naquelas longínquas paragens.
- Estabelece
ligação rádio com o Comando, que eu quero falar
com os gajos! – balbuciou o Carrilho, também já
preocupado com aquela situação nada agradável.
E foi de
abatimento o encolher de ombros agitado e
discordante do grupo, quando se espalhou a
resposta do oficial de operações.
- Porra, mas
quando é que a malta atinge o Rio Montepuez? Em
vez de irmos para o Messalo onde eles se
acoitam, vamos para sul? E se não encontrarmos
água até lá? E o que vamos comer amanhã se a
ração está a acabar?
Ninguém
respondeu ao Correia, de novo a espalhar
pessimismo, qual Velho do Restelo das selvas
africanas.
Mas a ordem
era para cumprir, estava acima de qualquer
desabafo, era superior a qualquer dúvida ou
rezinguice do pessoal. E, bem no íntimo, eles
tinham a noção disso, mas aquelas "bocas"
descontraíam e davam as energias que iam
faltando.
Estava
prometido o abastecimento hélio para a tarde do
outro dia. Viriam mais umas caixas de
alimentação pré fabricada.... A água, só por
sorte se encontraria, a não ser quando
atingissem o rio, para sul, razoavelmente
caudaloso e onde, na anterior operação, o Capoca
havia colhido um bom Kg de camarão. Ricos rios
que até camarão davam! A malta até se imaginava
os balcões da Portugália.....
A progressão
era lenta, por perigosa. Por vezes, a indicação
do "cinco" da frente, periodicamente rendido, o
grupo abria em linha, metade para cada lado do
trilho inimigo que seguiam, não fosse uma
rajadas traiçoeiras, por detrás de um tufo de
vegetação mais denso ou de uns rochedos soltos,
surpreendê-los. Para triste e doloroso exemplo
chegara o que, dias antes, acontecera ao alferes
Marques, um jovem quase formado em Medicina, que
se vira privado da perna direita, quase
esfacelada.
Este tipo de
avanço era difícil, mas necessário, e retardava
um pouco o andamento que, em tais
circunstâncias, não chegava aos dois Km por
hora.
Eram já duas
da tarde. O sol, na vertical, jorrava vagas de
calor inclemente sobre os corpos suados. O
Ferreirinha largava imprecações minuto a minuto,
quando uma aborrecida micose lhe ardia ao roçar
as calças de caqui.....e o sacana do Correia só
levava mizórdias....acusava o furriel.
De repente,
tudo pára. Num movimento sincronizado, qual
grupo de bailado rítmico em estreia no Olímpia,
todos se deitam, sem ruído, indicador a
tremelicar, hesitante, junto ao gatilho. Mas não
soaram tiros. O passa-palavra chegou depressa
aos últimos homens que, já levantados, sorriam:
uma jibóia, que mais parecia o tronco de uma
umbila, atravessara-se no trilho, pachorrenta e
indiferente a tantas espingardas.
- Mata-se,
meu alferes? – perguntou o Ambasse, um maconde
esguio, especialista em liquidar cobras daquela
envergadura, arrastando-as vários metros pela
cauda, com o auxílio de um pau-forquilha.
Não
satisfeito nas suas pretensões, ensaiou um esgar
de desolação por entre as secas faces tatuadas e
juntou-se ao grupo, que já recomeçara a
progressão. A jibóia lá ficara, imperturbável, a
digerir os restos de qualquer gazela azarenta.
O sol já
declinava. Não sendo viável atingir, ainda de
dia, o Rio Montepuez, objectivo que, no momento,
os movia, com as calças a balançarem largas e
soltas debaixo das cartucheiras pesadas,
pensou-se em calar o estômago contraído.
IV
Não
tinham aqueles homens, já bastante
identificados com a vida no mato e com os
perigos que lhe eram inerentes, por hábito
tomar a última refeição, ligeira, no local
da pernoita. O Carrilho sabia bem quanto lhe
tinha custado, um ano antes, livrar-se das
carnívoras formigas a que, muito a
propósito, apelidavam de “cadáver”. Fora uma
noite de sofrimento: os detritos, o cheiro
das latas engorduradas, eram um tentador
convite para aqueles bichinhos gulosos. E
apareciam de todo o lado, como que chamados
por batuque festivo ao banquete real que a
carne odorosa da malta lhes oferecia.
Assim,
havia que comer qualquer coisa antes de
anoitecer e do descanso, pois impossível
seria romper às escuras por uma selva tão
fechada.
E foi
nessa paragem que o alferes caiu num
daqueles erros negligente, ele que não
costumava facilitar em questões de
segurança. Quando num trabalho de
nomadização, em que se andava pelo mato em
busca de indícios que levassem ao encontro
do inimigo, mas ainda se não seguia qualquer
pista, era natural que em qualquer lado se
fechasse o circulo para a refeição. Não era
este o caso, pois seguia-se um trilho que os
guerrilheiros utilizavam. E a norma seria
deixar metade da força emboscada junto
àquele, enquanto o resto se afastava uma
meia centena de metros. Passados uns dez ou
quinze minutos, tempo suficiente para tragar
umas sardinhas em azeite e umas quantas
duras bolachas, haveria a troca do pessoal.
- Como
a refeição tem de ser breve, comemos mesmo
aqui. Manda abrir o circulo e avisa o
pessoal para que se não demore. - e lá foi o
apressado furriel Bazuca dispor os homens
naquela roda rotineira que fazia lembrar o
circulo das caravanas de caras-pálidas
perante a iminência de um ataque de Apaches,
que o faziam vibrar junto à caixa
televisiva, na sua meninice não muito
remota.
Foi,
então, que um tiro seco soou. Seguiu-se um
desordenado e barulhento pegar nas armas em
repouso junto aos joelhos dos fardas-pretas,
ocupados a esburacarem as latas da ração.
Ouvidos atentos, olhos a girarem em todas as
direcções, interrogativos, numa fracção de
segundos.
De
repente, o ar em volta é cortado por uma
sinfonia macabra de tiros, rebentamentos e
gritos de ordem que não se ouviam.
-UIO-MAMA!
- E os homens levantam-se, de armas
apontadas. O grito era o sinal já antigo que
os elementos em confronto lançavam para
avisarem os mais recuados que o inimigo
debandava e era o momento de os perseguir. O
pessoal da retaguarda cala as armas,
enquanto a secção avançada continua a
disparar sobre o adversário em fuga.
Foi
breve a perseguição. Tinha que o ser quase
sempre, quando os poucos guerrilheiros se
dispersavam por entre a mata densa.
Seguiu-se a batida em linha, para detectar
armamento abandonado no confronto.
- Eu
sabia que ela estava aqui, meu alferes! O
gajo deve ir ferido, porque eu atirei-lhe
num braço!.... - e o Jonange, com os dentes
afiados por debaixo dos seus lábios
espessos, sorria, exibindo uma “Simonov”
ainda nova, oriunda do bloco soviético, o
maior arsenal da Frelimo. Outros haviam,
também se encontravam armas de origem
americana e de potências ocidentais.
- O
artista vai mesmo ferido, - dizia o
ferreirinha, ao inspeccionar a
semi-automática com umas gotas de sangue
ainda fresco, ao longo da bandoleira de
caqui.
Não
eram mais do que cinco os inoportunos
estraga-jantares, mas foram mais do que
suficientes para agitar e desgastar, ainda
mais, aquela trintena de homens já cansados.
Seguiu-se o afastar do local para o “estudo
da situação” que o Carrilho costumava fazer
nestas situações, não só para se inteirar
dos pormenores do confronto, mas também para
acalmar os homens ainda agitados, com o
coração a bater forte e os ouvidos a
repetirem, teimosamente, o eco da metralha.
V
-
Foram eles que deram o primeiro tiro, meu
alferes. O Amisse estava levantado a afiar
um pau para tirar o ananás da lata. Foi para
ele que os turras dispararam.
- E
porquê tanta demora a responderem? -
interrogou o Carrilho, fitando o velho cabo
negro, que fora caçador de elefantes lá para
as serras do Niassa.
- Nós
só os vimos quando voltaram a fazer fogo.
Foi então que o Jonange começou a disparar
sobre os gajos....
Já
escurecia. O alferes estava desolado.
Irritado mais consigo próprio por ter
falhado daquela maneira de checa
principiante, que já não era. Mas que raio
de azar aparecerem logo naquela altura! E,
pior ainda, não era o grosso da coluna
inimiga que tinha por missão deter. Cinco
homens seriam, ou uma guarda avançada ou, o
mais provável, emissários enviados ao
“quartel-general” da área, algures mais a
norte, dando conta dos resultados do ataque
ao aldeamento, ou na procura de
remuniciamento, pois os guerrilheiros quando
perpetravam qualquer ataque eram “generosos”
no gastar de munições, que não podiam
armazenar em grandes quantidades.
Mas
tudo isto eram conjunturas falíveis.
- E se
os tipos recuam e vão avisar os outros que
estamos a tentar apanhá-los? Já não dou nada
por isto! - desabafava o Ferreirinha, sem
deixar de coçar a micose que naqueles
momentos de tensão ainda mais o importunava.
- Não
devem ir, meu furriel, - interrompeu o
Capoca, com o seu ar de sabe tudo -, eles
quando vão para qualquer sítio já têm
combinado o local de encontro no caso de
serem atacados. Separam-se agora na fuga,
mas vão juntar-se lá mais à frente, para
continuarem a marcha rumo ao seu inicial
destino.
O
Carrilho apostou nesta versão. Não só pelas
provas de intuição guerrilheira que o
“Perdigueiro” já havia dado, mas pelo facto
de ter sido já combatente activo da Frelimo.
E, vá-se lá saber porquê, era considerado
“acima de qualquer suspeita”...
Não
houveram baixas nos fardas pretas. Apenas
uma camisa furada e um ligeiro arranhão nas
costas do Amisse, onde o Correia já colocara
mais um adesivo.
VI
A
noite marcou-lhes encontro quando já
procuravam local próprio para mais um
descanso. Não o foi muito, porque os
nervos excitados ainda não haviam
atingido o “rilex”; tão difícil de
conseguir naquela guerra desgastante,
nada convencional.
O
outro dia seria mais complicado. A
ração, em termos logísticos, já havia
acabado, não obstante o pouco apetite do
dia anterior e o “calo” de poupança do
pessoal guardassem umas latas
providenciais. A água é que molhava
poucos cantis. Ma o rio seria atingido
pela manhã e o reabastecimento “hélio”,
já prometido, era esperado à tarde.
-
Falta muito para chegarmos ao Rio
Montepuez? -
pergunta o Ferreirinha, quando já tinham
duas horas de marcha do novo dia, eram,
então, seis e meia da manhã e o sol já
raiava há muito por entre o arvoredo,
agora mais verdejante e espesso, com o
aproximar do rio tão desejado. E o
Alberto, uma macua que vivera naquela
zona, agora deserta, muitos anos, até
que a guerra chegou, e onde tinha a sua
palhota e uma grande machamba de
mandioca, aponta para o céu sem nuvens
e, indicando um ponto imaginário,
respondeu ao ansioso furriel:
-
Se não pararmos, quando o sol estiver
ali, já estamos no rio.
Não
foram muito enganadores os dados do
velho cabo Alberto. Pouco passava das
onze, quando o grupo atingiu a margem de
vegetação densa e viçosa do tão familiar
Montepuez. O trilho, que nunca haviam
deixado de seguir, bifurcava-se ali e
perdia corpo, para se transformar numa
manta de abundantes pegadas, por entre o
tufo de lianas entrelaçadas em árvores
de copa larga.
Era
aquele o local pretendido para a última
tentativa de interceptar o inimigo no
seu regresso de ataque ao aldeamento.
Para
o Carrilho, que não deixando de
respeitar, no essencial, as ordens que
recebia, valia bem mais o seu objectivo
pessoal e o melhor que se podia
conseguir daquela missão era subtrair do
controlo do inimigo os elementos da
população por ele raptados no aldeamento
e que, segundo indicação rádio, rondavam
as 20 pessoas. Ele sabia que aquela
gente não ia de vontade. Conhecia bem a
realidade macua. Se fosse da sua
vontade, oportunidades para se juntarem
aos guerrilheiros da Frelimo não lhes
faltavam, atendendo ao isolamento da
aldeia, onde se dedicavam ao cultivo de
produtos para sua subsistência e de
rendimento, como o algodão e o caju. Os
macuas eram pacíficos, queriam paz e não
se deixavam aliciar pelos insistentes
convites dos “mabandidos”, como então
chamavam aos guerrilheiros.
Daí
as retaliações frequentes,
caracterizadas por um vandalismo
primário, pouco compatível com o
alardear de intenções libertadoras que
apregoavam. Daí, também, o desprezo, a
raiva incontida que alimentava uma
fogueira de vingança no peito daqueles
negros fardados, que deram a algumas
forças expedicionárias, exemplos de
coragem e de luta interessada, passe a
categoria de algumas tropas europeias de
elite que se souberam bater com honra.
Por
tudo isso, o esforço, o espírito de
sacrifício, indiferente à sede e à fome,
daquele grupo de fardas negras,
preocupado, agora, no encher dos cantis,
no refrescar dos corpos sujos naquelas
águas transparentes dum rio que desliza
em suave paz, alheio aos sentimentos de
dor, de medo, de horror àquela guerra e
seus terríveis efeitos, de homens que
procuravam dentro de si mesmos
justificação para uma guerra de irmãos
que nunca haviam experimentado. Como
acabá-la, como extirpar o ódio, como
dizer basta?! Perguntas sem
resposta.......
Mas,
enquanto estas meditações ocorriam,
tratava-se era de cumprir mais uma
missão, mais uma peça duma engrenagem
bem complicada e havia tão só que a
desempenhar o melhor possível, com o
profissionalismo a que o dever obrigava.
-
A secção do Bazuca já está abastecida de
água. Vou agora com o meu pessoal. -
informava o Ferreirinha, enquanto o
alferes, esticando a antena do Racal,
tentava comunicar ao Comando a sua nova
localização, atingido que fora o
objectivo imediato. O restante pessoal,
disposto em linha paralela ao leito do
rio, tomava posições, não fosse surgir
nova surpresa, enquanto uns vinte metros
mais abaixo os outros se dessedentavam.
VII
As
três da tarde surpreenderam o Carrilho
com o Bazuca e um grupo de cinco
elementos a reconhecerem o local da
emboscada, que até nem era muito
apropriado: a vegetação cerrada, com
ramos entrelaçados por sobre a margem do
rio, apesar de abrigada e bem camuflada,
tinha o inconveniente de não permitir
ligação á vista entre o pessoal, mas
tinha a vantagem de colher o inimigo na
travessia do rio, com pé naquela
estação, passe o razoável caudal de água
corrente. Outras alternativas não eram
mais viáveis.
-
Apre, mas aqueles gajos passam por aqui?
Esta porcaria está cheia de feijão
macaco! - vociferava o Bazuca, enquanto
se coçava aflitivamente. Aquele pó que
as malvadas feijocas libertavam ao serem
tocadas era mesmo demoníaco! Irritava
bem mais que um bravo urtigal das
Beiras. E o comichão não passava, sem
que a pele ferida de arranhões fosse
esfregada por providencial cinza de
queimada recente. Era, naquela região,
um dos maiores inimigos que a vegetação
tropical lançava contra o homem.
- Os
tipos têm a pele dura, não barram as
orelhas com creme Nívea, como o meu
furriel....-zombou o Correia, que não
deixou de ir meter o espevitado nariz no
breve trabalho de reconhecimento.
Vinte minutos depois já quinze homens
estavam dispostos ao longo da margem,
com o rio e o lado oposto à vista, numa
linha que, por força da natureza do
terreno, não teria mais que quarenta
metros de extensão. Os restantes quinze
ficaram recuados a uns trinta metros dos
emboscados e tinham por missão fazer
face a qualquer, pouco provável mas não
impossível, aproximação do inimigo pela
retaguarda.
Renderiam os outros duas horas depois e,
no caso de surgir o grupo inimigo,
ocorreriam para os flancos, em reforço
do pessoal da frente.
Mas tudo começou pouco depois. O
Inferno, numa aparição contraditória,
abriu-se, abrasador, por entre as águas
frescas do rio e passou-se a meia hora
mais longa na vida destes combatentes,
passe o facto de já estarem habituados a
situações de confronto.
Aquela foi diferente, foi desumana,
terrível!....
Haviam sido dadas instruções para que só
se disparasse quando o inimigo surgisse
em grande número, já dentro de água. Mas
ele usava das suas cautelas. De início,
só dois guerrilheiros entraram na água.
O grosso da coluna aguardava em fila, do
outro lado.
Não arriscavam de qualquer maneira. Os
ensinamentos colhidos pelos chefes na
China e URSS haviam sido bem
assimilados. Viam-se os primeiros três
estáticos, aguardando que os dois
primeiros fizessem a travessia....
E
não se sabe quem abriu as portas daquele
inferno trovejante, quando aqueles
divisaram o cano brilhante de uma G3
menos escondida. Quais molas de aço,
atiraram-se em cambalhotas aquáticas,
disparando sempre, até caírem atingidos
dentro de água.
Foram as primeiras vítimas. Os outros
recuaram, retomaram posições e
despejaram sobre os quinze emboscados
quantas armas traziam.
Seguiu-se um tiroteio intenso, medonho.
Três bazucadas inimigas fizeram lume por
cima das lianas esfaceladas, por sobre a
cabeça do Ferreirinha. Os gritos
confundiam-se com o rebentar constante
das granadas que levantavam água
fervilhante. Gritos de dor, à mistura
com outros de incitação, davam àquele
quadro incandescente um reflexo de luta
e morte.
Os
abutres não tardariam a esvoaçar sobre
ele!...
O
grupo inimigo era numeroso e aguerrido.
Notara-se logo, aos primeiros disparos.
Mas, se alguém tinha que abandonar o
terreno, seriam os guerrilheiros. Eles
sabiam-no e convinha-lhes por
estratégia, mas a força do seu número e
armamento davam-lhe inusitado ânimo de
experimentarem o pulso dos fardas
negras, talvez, também, para darem
cobertura e tempo à retirada da escolta
com a população raptada. Só eles
sabiam......
-O
morteiro, depressa! - grita o alferes,
correndo por entre o capim ao encontro
do apontador Zé João, um misto landim
muito dedicado.
Era o último recurso. Quando a força
inimiga era forte, insistente e bem
armada, só o rebentar das granadas de
morteiro 60 a podia desmoralizar. E, em
catadupa, foram caindo na outra margem,
com uma impressionante regularidade, dez
granadas que elevavam por cima das
copas, uma nuvem de folhem seca.
As
armas ligeiras foram-se calando, pouco a
pouco.
- Meu
alferes, temos um morto. O Manjate já
não tem vida.. -
gaguejava o Correia, com o rosto lívido
e os olhos desorbitados a jorrarem
lágrimas envergonhadas, - também há
feridos, mas ainda os não alcancei.
Estão entre as lianas. Eu oiço-os...-e
já corria com a caixa de medicamentos
por entre o arvoredo.
O
eco da metralha calara-se de vez. Só a
vozearia excitada e os chamamentos
aflitos, entrecortados por gemidos de
dor, se ouviam.
Além da baixa do Manjate, atingido em
cheio no peito por estilhaços de granada
de bazuca, haviam mais três feridos, com
alguma gravidade.
Já
o furriel Bazuca, com o pessoal que
acorrera aos flancos, atravessava o rio
em corrida. Era a perseguição ao inimigo
que se sabia levar feridos. Os dois
mortos, tombados na água, lá contiuavam...
Os
homens que sofreram o impacto directo do
combate, reagrupavam-se sob a orientação
do Correia; transportavam os feridos
para local mais aberto e recuado. Um
deles era o Ferreirinha, o veterano que,
a dois meses do fim da sua comissão,
gemia e jorrava sangue. A bala
ficara-lhe alojada no antebraço. Talvez
no osso.
- Já
pedi a evacuação. Depois desta merda
acabar, vamos directos à estrada de
Macomia que fica mais próxima e, às nove
horas, a Companhia de Muaguide tem
viaturas para nos recolherem. Disse-lhes
para não trazerem rações.....ninguém tem
fome depois desta porcaria....
O
Bazuca, com o pessoal empenhado na
batida no outro lado do rio, tardava em
aparecer. Mais do que o braço do
Ferreirinha, o Carrilho notava a
atrapalhação do Correia às voltas com o
Ambasse, com um estilhaço de granada
alojado na cabeça. O seu aspecto não era
assustador, mas o enfermeiro sabia, por
experiência, do perigo de tal ferimento.
O braço do furriel, a que fora estancado
o sangue, ia inchando assustadoramente.
Não lhe faltava o ânimo, alimentado
pelas palavras reconfortantes do
Carrilho, mas não escondia a dor que
começava a sentir, cada vez mais
forte.....
Os
olhares sofridos do pessoal evitavam o
corpo do infeliz Manjate, coberto por um
abafo de pescoço. Era a primeira
mortalha de um negro jovem, que nunca
deixava de estar nos locais mais
perigosos da luta.
No
emaranhado de sentimentos que assaltavam
os seus camaradas, ainda não viera à
superfície a dor profunda que os
dominou, largo tempo, no perder dum
companheiro de armas....
VIII
-
Meu alferes, lá vêm os passarinhos! -
informou o Amisse, apontando para os
dois helicópteros vindos do horizonte
baixo.
Aproximavam-se. Um pouco acima, um
barulhento T6 dava-lhes protecção.
A
clareira da retaguarda serviria para a
aterragem, apesar do capim alto.
Montou-se segurança e uma granada de
fumo largou um espesso cogumelo.
-
E o Bazuca que não vem com a malta! Se
houverem feridos dos gajos ou da
população raptada, não são evacuados!
Já se
fazia tarde e a Força Aérea não faria
evacuações nocturnas. Mas, de momento,
interessava prestar assistência aos
nossos feridos.
Não
muito do agrado da tripulação, lá se
conseguiu meter o Manjate, o primeiro
morto dos fardas pretas desde que há
cerca de dois anos o Carrilho os
comandava. Teve que viajar no “hélio”
com boletim de ferido. Teria um funeral
mais digno e humano que aquele que,
localmente (na base), lhe poderia ser
oferecido.
E
quando os helicópteros, barulhentos, se
elevavam lá no alto, algumas lágrimas
teimosas saltavam dos olhos de homens
endurecidos no calor da selva e da
metralha, de corações forjados na selva
inóspita em fortes laços de
cumplicidade. Mas eram homens, sensíveis
como todos os outros....alguns bem mais
ainda. Não eram mariquices aquelas
lágrimas que lhes rolavam pelas
faces....começavam a compreender o
mundo, a vida, à custa de sofrimento e
de morte. À custa de si próprios....
-
Já chegaram ao rio. Trazem muita gente
com eles! -avisou
o Zé João, agarrado ao morteiro 60, que
nem a dormir largava. E vinham mesmo. O
Jonange trazia mais cinco armas que não
eram as suas: três Kalascnicov e as duas
Simonov molhadas que, entretanto,
retirara do rio. O Ubisse, como se a sua
pesada metralhadora lhe não pesasse,
exibia duas granadas de bazuca. Outro
maconde carregava com dois sacos de
papéis e, com a habitual graça, ia
informando, zombeteiro, que
“os gajos queria montar no mato mesmo o
gabinete do administrador....”.
Com os
últimos cinco homens, vinham, então,
elementos da população do aldeamento
atacado. Com eles haviam perdido grande
parte do tempo, pois cada qual dos civis
se esquivara para seu lado, ao soarem os
primeiros tiros. Outros teriam mesmo
fugido do local e tentariam, por certo,
alcançar a aldeia donde haviam sido
raptados.
Tal
não acontecera ao filho duma velha
negra, que chorava copiosamente: ao
tentar subtrair-se à vigilância dos
frelimos, fora abatido, de imediato.
Um
velho, de peles secas, que diziam ser
importante conselheiro do aldeamento,
andava com muita dificuldade. Dos dedos
dos pés, mordidos pelas micaias
espinhosas, jorrava sangue a cada passo.
Não
tinha descanso o Correia, naquele
lúgubre fim de tarde.
-
Os tipos eram muitos, meu alferes – diz
o Bazuca, que , mal chegou da batida
final, se encostou, hirto de cansaço, a
um pequeno arbusto. -Diz esta gente
-apontando para uma dezena de populares
de ambos os sexos e variadas idades -que
devem ser à volta de setenta. São
oriundos de várias bases e só se
reuniram para este ataque ao aldeamento
do Longote. Além dos que tombaram no
rio, encontrámos mais um, logo na
margem, e outro já mais longe. Levam
feridos, pois há rastos de sangue, devem
tê-los carregado. Só lá estava este! - e
de dedo em riste apontava para um
maconde muito jovem, 16...17 anos, já
sob os cuidados do enfermeiro. Não
gemia, só lançava, a espaços. Gritos de
dor. Tinha a perna bastante ferida,
talvez pelo rebentamento de uma das
granadas de morteiro.
-
Temos de o carregar. Tratem de
improvisar duas macas de ramos, pois o
velho também não consegue andar e temos
de atingir a estrada de manhã cedo.
Vamos pernoitar mais à frente. O
Alberto, que conhece bem a zona, ainda
que nos vá custar, pode guiar-nos mesmo
no escuro, para ganharmos algum tempo.
Foi,
então, que parte dos fardas pretas
começou a rodear o alferes, com um
semblante estranho, a passos lentos mas
decididos.
-
Que quem vocês? Mexam-se que temos que
arrancar daqui!...
-
Nós queremos dizer-lhe que só carregamos
o velho, meu alferes. O turra fica!
Morto ou vivo, não interessa. Mas nosso
não vai carregar com bandido que matou
Manjate!
E
travou-se um diálogo acalorado, nada
agradável. O Carrilho olhava para o
Bazuca, como que pedindo reforço de
argumentos, mas aquele, ainda encostado
aos arbustos, limitava-se a passar as
mãos pelos cabelos desgrenhados....
IX
-
Vocês não sabem que é crime
abandonarmos um homem ferido, seja
quem for? Também gostavam que eles
vos fizessem o mesmo? Guerra é
guerra, mas o combate já acabou! –
insistia o alferes.
-
Eles fazem pior! Então porque é que
os gajo quando apanha os milícia na
picagem mata aqueles que ficam
feridos nas armadilhas? Aquele meu
primo Silale que ficou escondido na
mata, não viu eles darem tiro na
cabeça daquela gente?!- explodiu o
Capoca.
-
E meu alferes já esqueceu o que
turras fizeram com seu primo
cantineiro lá em Ancuabe, um homem
que nem arma tinha e eles mataram
junto com senhor Daniel do algodão,
lá na estrada de Moja?! – observa o
Zé João, num tom mais respeitoso,
mas com mal contida raiva.
O
Carrilho viu-se perante um dilema
que não esperava enfrentar. Aquela
atitude de quase insubordinação
geral, perante a indiferença
comprometedora do furriel e do
Correia, tomava foros delicados, de
indisciplina.
A
muito custo, depois de lhes lançar o
ultimato de que pediria para
abandonar o G.E. logo que chegassem
ao Quartel, caso a recusa de
transportar o "turra" ferido, lá o
foram carregando, contrariados e
vociferando impropérios contra o
frelimo que, afinal, era tão só mais
uma vítima de guerra, de que pouca
culpa também teria. E que, mais do
que trazer no peito a ânsia de
independência, mais não era do que
um joguete de interesses
internacionalistas e dos jogos de
poder de altas potências.
E
a abatida caravana arrancou daquele
local sinistro, que ficaria gravado
para sempre nas suas memórias.
Local de morte, de desolação, que
poderia ser de trabalho e de paz.
Mais um pedaço de vida ficava ali
perdido por entre lianas
entrelaçadas que as balas raivosas
cada mais desuniam.
No lodo das margens daquele rio
ficavam enlameados bocados de almas
de jovens que pretendiam conseguir o
que, viu-se mais tarde, responsáveis
não souberam respeitar, indiferentes
aos sentimentos duma população que
procurava fraternidade e
entendimento.
Indignos do sacrifício de tantas
vidas foram uns e outros. Uns por
teimosia doentia, outros por
incompetência e outros, ainda, mais
recentes, por pressa e traição
vergonhosas, quando decidiram ao
total arrepio da vontade das
populações.
FIM.
UMA PÁSCOA DE PAZ PARA TODOS OS
EX-COMBATENTES!
Francisco José Branquinho de Almeida
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