(transcrição do publicado na Revista "Domingo" do Correio da Manhã, de 03/08/2008
03 Agosto 2008 - 00h00
João Bravo da Mata, Moçambique
(1961/64)
"Tínhamos o bom senso como arma"
Cumpria o meu serviço militar
obrigatório, como oficial miliciano,
no Regimento de Cavalaria 8, em
Castelo Branco – quando, em Março de
1961, chegaram as notícias de Angola
sobre a eclosão de um movimento
terrorista que matava selvaticamente
portugueses que lá viviam ou lá
tinham nascido.
Tornava-se, pois, imperioso ocupar
militarmente Angola. Foram
mobilizadas e preparadas unidades
militares que foram reforçar a
guarnição normal da província.
Ao mesmo tempo que se socorria Angola, tomavam-se medidas preventivas em relação a Moçambique. Fui então mobilizado pelo Regimento de Cavalaria 3, em Estremoz, para enquadrar um esquadrão que tinha como missão a ocupação militar e manutenção da soberania numa região da província – toda uma vasta região ao redor de Furancungo, no norte da província.
Durante o período de preparação do meu esquadrão, os oficiais que nos preparavam sublinhavam, vezes sem conta, de que à época havia apenas um teatro de guerra: Angola. E que a nossa tarefa em Moçambique consistia apenas em manter a soberania nacional. No entanto, lá em Moçambique, como parte da nossa enorme zona de acção ficava junto à fronteira, esporadicamente houve incursões que tiveram de ser travadas. Mas nessa altura os elementos do inimigo ainda usavam lanças e catanas e normalmente estavam embriagados. Em vez das armas era importante usar o bom senso.
Por isso considero que muito mais importantes que esses episódios foi a acção psicossocial que desenvolvemos. Foram centenas e centenas os nativos a quem ensinámos a ler, a escrever e a contar, ou a quem prestámos auxílio médico e medicamentoso, ou ensinámos a tirar proveito daquela terra magnífica, fornecendo-lhes sementes e ferramentas.
Em 30 de Junho de 1961 partia rumo a Moçambique, a bordo do navio Niassa, o primeiro grande contingente de tropas – cerca de dois mil homens – do qual fazia parte a minha unidade, o Esquadrão de Cavalaria 181.
Levava nos ombros, além das divisas de alferes, o peso da responsabilidade e da incerteza no futuro.
Depois de uma breve escala na lindíssima cidade do Lobito (Angola), em 12 de Julho de 1961, rumámos ao longo da costa: passámos ao largo da Cidade do Cabo (África do Sul), dobrámos o Cabo da Boa Esperança e avistámos depois a moderníssima cidade de Durban – até desembarcarmos na maravilhosa cidade de Lourenço Marques, capital de Moçambique, em 21 de Julho desse mesmo ano.
Ao Esquadrão de Cavalaria 181 competia ocupar a área geográfica da circunscrição administrativa de Macanga, localizada ao norte do distrito de Tete, e aquartelar as tropas em Furancungo.
Voltámos a embarcar no Niassa. Ficaram em Lourenço Marques as unidades que se destinavam a ocupar a zona sul de Moçambique. O navio levou-nos até à inesquecível cidade da Beira, onde recebemos mais e detalhadas instruções sobre o itinerário a percorrer até alcançarmos o local de destino. Deixámos de vez o Niassa e as unidades que iriam ocupar as zonas centro e norte da província.
À nossa unidade competia marchar para o interior: primeiro, de comboio, até Moatize; depois, em diversas viaturas civis de transporte de carga. Chegámos, por fim, à inóspita povoação de Furancungo.
Ali chegados, vimos que não havia quartel, nem abastecimento de água, nem electricidade, nem telefone que pudessem ser postos à disposição da unidade de que fazia parte. Mas havia, da nossa parte, um verdadeiro e patriótico espírito de missão.
E foi com esse espírito de missão e de sacrifício que aproveitámos um antigo acampamento dos serviços de prospecção dos caminhos-de-ferro para transformar algumas casas e palhotas, em péssimo estado de conservação, em precárias instalações para aquartelar uma unidade com um efectivo de cerca de 250 militares.
Programar a sobrevivência deste contingente de tropas com as missões de reconhecimento, patrulhamento e defesa de uma enormíssima área geográfica de ocupação não foi tarefa fácil.
Depois de instaladas as tropas, e do indispensável reconhecimento da área geográfica atribuída à responsabilidade e defesa do Esquadrão, foram consideradas e planificadas as missões em que a unidade se deveria empenhar. Programámos as operações militares imediatas nas áreas do reconhecimento, patrulhamento e defesa. Foi igualmente considerado prioritário pôr em prática várias medidas de apoio às populações – para que as unidades militares pudessem demonstrar aos civis que as missões de defesa do território não eram incompatíveis com as missões de carácter humanitário, educacional e social.
Sem descurar a operacionalidade das tropas e a sua adaptação ao terreno e ao clima de uma tão extensa área geográfica, aproveitámos as vocações profissionais e pessoais de alguns oficiais, sargentos e praças para efectuarmos outras missões junto das populações.
Levámos a cabo diversas medidas de acções médicas sob a orientação do oficial médico do Esquadrão, em todas as situações em que os serviços de saúde civis não podiam dar resposta, quer por inexistência local desses mesmos serviços, quer pela distância ou demora da sua comparência na assistência de casos urgentes.
Foram dinamizadas algumas medidas no que respeita ao ensino da leitura e escrita da Língua Portuguesa, assim como da aritmética elementar, junto de elementos militares indígenas que tínhamos destacados na nossa unidade ou até de civis indígenas que nunca tinham frequentado uma escola.
Foram feitas várias experiências, com excelentes resultados, na área da agricultura e, sobretudo, da horticultura, utilizando sementes de vários produtos oriundos do Continente, que permitiram não só um auto-abastecimento em produtos alimentares para o contingente militar, como também o ensino de cidadãos africanos na preparação do cultivo daquelas fertilíssimas terras.
A unidade dispunha, inicialmente, de um número reduzidíssimo de viaturas para o cumprimento das acções militares a que se propunha – e não havia outra fonte de abastecimentos que não fosse a das precárias cantinas, os estabelecimentos comerciais locais.
A zona de patrulhamento fronteiriço, a norte, era muito extensa e a facilidade de penetração de independentistas em terras moçambicanas, a partir de países vizinhos, era praticamente total.
O nosso aquartelamento distava uma meia dúzia de quilómetros da povoação de Furancungo, percorridos através de uma picada esburacada onde o andamento era forçosamente lento e difícil.
Apesar de todas as dificuldades, a boa relação com os quadros administrativos locais permitiu uma acção de soberania vigilante e operacional e uma forte cooperação no apoio às populações indígenas nas áreas da saúde, da educação, da instrução, da agricultura e da construção ou melhoramento de picadas e pontes em regiões de difícil acesso a pessoas e viaturas.
E foi com orgulho e a consciência do dever cumprido que o Esquadrão de Cavalaria 181 passou o testemunho e o comando a outra unidade de Cavalaria que a foi render. A todos os oficiais, sargentos, cabos e soldados que integraram o Esquadrão de Cavalaria 181 e serviram com honra e coragem o Exército e a Arma de Cavalaria, aqui deixo expressa a minha homenagem e a sã camaradagem de sempre.
"AINDA HOJE LAMENTO NÃO TER SEGUIDO A VIDA MILITAR"
João Bravo da Mata chega aos 71 anos com a certeza de não ter seguido a carreira para que se sentia talhado: “Ainda hoje, lamento não ter seguido a vida militar, pois o companheirismo que ali senti nunca encontrei na vida académica que conheci antes e depois do serviço”, diz sem disfarçar uma pontinha de arrependimento. Quando regressou de Moçambique, cumprida a comissão em Furancungo, no norte da província, queria continuar nas fileiras a servir na Arma de Cavalaria para onde as sortes o atiraram na altura de assentar praça. Até porque – recorda João Bravo da Mata – “o País não estava preocupado, com muita mágoa minha, se os soldados regressados de África tinham, ou não, condições de subsistência”. Ficou, pois, de divisas ao ombro – e desempenhou funções como subchefe do Distrito de Recrutamento e Mobilização de Dezembro. Teria continuado na família militar, não fosse um irrecusável convite de trabalho na indústria farmacêutica. Largou a tropa – e abraçou a vida civil. Casou-se. Do matrimónio nasceram duas filhas. A convite da empresa, frequentou um curso de gestão de empresas, funções que desempenhou até à reforma, em 1985, com 58 anos. Hoje, vive na Ericeira. Está divorciado.