Foi notável o apelo
que o presidente da República se sentiu obrigado a fazer
ao Governo para que cumpra com as responsabilidades que
o Estado tem com os que sofrem as consequências das
guerras coloniais.
A assistência aos
deficientes das Forças Armadas tem sido considerada
questão menor. Sucessivos governos têm aguardado que
o problema dos antigos combatentes em geral e dos
deficientes em particular se resolva por si. Na
realidade é isso que tem acontecido. A morte
prematura resolve com arquivamentos definitivos, um
a um, processos protelados em burocracias
complicativas, diligentemente alinhavadas para
satisfazer expectativas orçamentais. Têm-se
inventado redefinições dos graus de invalidez.
Reavaliado o que são situações de guerra e de
combate. Tudo para conseguir roubar na assistência
aos veteranos. Burocratas que não imaginam o que
foram as décadas de desumanidade que gerações de
jovens dos anos 60 tiveram que enfrentar decidem
agora em termos de custo-benefício se vale a pena
rubricar nos orçamentos as verbas necessárias, ou se
é de aguardar mais uns anos até que os problemas
naturalmente se apaguem. Não se trata só de acudir
às deficiências fisicamente mais óbvias, que
infelizmente têm sido descuradas ou
insuficientemente assistidas. Há graves
consequências clínicas da guerra que estão a ser
mantidas discretamente afastadas do foco mediático.
O elevado número de antigos combatentes que padece
hoje de uma forma particularmente virulenta de
Hepatite C é uma dessas situações. São as vítimas
directas das vacinações em massa sem seringas
descartáveis, que eram norma nas Forças Armadas até
bem dentro da década de 70. Centenas de milhar de
jovens foram injectados nas piores condições
sanitárias possíveis. Era usada a mesma seringa
colossal de uns para os outros. Apenas substituíam
as agulhas que depois de fervidas voltavam a ser
reutilizadas. As hipóteses de contágio eram máximas.
A Hepatite C é assintomática durante dezenas de anos
até os danos no fígado serem irreversíveis e, numa
alta percentagem, fatais. Nunca houve um programa de
rastreio sistemático dos antigos combatentes. Mas já
houve muitas mortes. Sei de várias e de casos em
que, face a diagnósticos positivos em militares de
carreira, não foram recomendadas medidas
terapêuticas no próprio Hospital Militar. Porquê?
Pode haver várias respostas. Que o tratamento é
difícil e muito penoso. Que pode ser falível. Tudo
verdade, como também é verdade que a despistagem e o
tratamento são caríssimos e seria impensável nos
actuais orçamentos da defesa torná-los extensivos
aos sobreviventes da guerra colonial. Este é só um
exemplo de consequências ignoradas da guerra que são
responsabilidade do Estado. Haverá milhares de
vítimas mortais se se mantiver a ligeireza fútil e
desumana como o problema tem sido encarado em
democracia. Atitude que em nada se distingue da
bestialidade com que, em ditadura, se enviaram
gerações sucessivas de jovens para conflitos
absurdos. Um pormenor mais. O mesmo governo que
disponibiliza verbas significativas para assistir
drogados contaminados em trocas de seringas
descartáveis, já pagas pelo Estado, não considera
prioritário destinar pelo menos o mesmo montante
para assistir em hospitais militares antigos
combatentes que padecem dos males que
involuntariamente contraíram, sem se drogarem.