Furriel
de artilharia destacado em
Moçambique entre 1973 e 1975, José
Morgado Vieira, 56
anos, natural e
residente em Tagarro, freguesia de
Alcoentre (Azambuja). Casado, tem
três filhos, de 13, 26 e 29 anos.
Saiu de casa aos 17 anos e foi
trabalhar para Lisboa como
escriturário. Quando regressou de
Moçambique, trabalhou numa fábrica
de detergentes, foi agricultor e
tornou-se bancário, profissão que
exerce desde 1984, sendo gerente do
balcão da Caixa de Crédito Agrícola
Mútuo de A-dos-Francos, nas Caldas
da Rainha.
Foi incorporado em Janeiro de 1973
em Vendas Novas, no curso de
sargentos milicianos. O comandante
do quartel era o coronel
“Oliveirinha”, dos Comandos. “Era a
tropa mais especial que havia e nós
também a tivemos”, conta José
Vieira.
“Para mim, o primeiro confronto de
“guerra” foi ainda cá em Portugal,
por causa da preparação. Tive uma
“guerra psicológica”, que
transformou o meu ego numa máquina
de combate, em que me tiraram todos
os valores, nos seis meses de
formação no curso”, sublinha.
“Prepararam-me para a guerra
colonial como uma máquina de matar e
destruir. O inimigo era para abater
sem contemplações, quase como o
Hitler quis fazer aos judeus. Fomos
completamente destroçados de todos
os nossos valores culturais,
sociais, familiares e de amizade.
Tudo isso nos roubaram através do
sofrimento e da dor, do passar fome
e sede, de não nos deixarem dormir.
Foi uma tortura psicológica. Foi a
principal “guerra” por que passei,
mais do que a “guerra balística”",
conta.
Durou seis meses. Como sargento
ministrou duas recrutas. Ao fim de
um ano, quem não era mobilizado para
as colónias já não ia e ficava.
Quando faltavam apenas onze dias
para passar à desmobilização, a 19
de Dezembro, é chamado para arrancar
para Moçambique.
“Estranhei a situação, mas
informaram-me de que eu ia em
rendição individual, isto é, ia
substituir alguém que tinha sido
morto”, comenta.
Na altura era furriel miliciano de
artilharia. Não tinha destacamento,
porque foi sozinho. Isso fez com que
tivesse uma entrada diferente em
Moçambique.
“Deram-me um bilhete de avião e não
sabia qual era a minha missão. Tinha
21 anos e os meus familiares ficaram
apreensivos. Apesar de trabalhar em
Lisboa eu era um moço da aldeia e
também não sabia o que me esperava
nem para onde é que ia. Era tudo
sigiloso”, recorda José Vieira.
“Fui num avião civil. Era a primeira
vez que andava avião. Não conhecia
ninguém. Quando cheguei a
Moçambique, à cidade da Beira, não
sabia o que havia de fazer.
Encontrei paraquedistas portugueses
que estavam de serviço no aeroporto
e disseram-me para apresentar nos
Adidos. Mandaram-me para a messe de
sargentos e aguardar por novas
ordens. Ali aguentei oito dias, à
espera. Recebo então a informação
para ir apanhar o avião para Tete, a
27 de Dezembro”, relata.
Passou-se o mesmo em Tete, que era
conhecido como o “cemitério dos
brancos”. Foi para os Adidos à
espera da colocação definitiva.
Passaram-se dez dias até lhe dizerem
que ia de boleia, numa aeronave
uni-motor de distribuição de
correio, para o quartel de Gago
Coutinho, no norte do distrito de
Tete, a três quilómetros da Zâmbia.
“Tive então a minha prova de fogo,
numa povoação só com palhotas e um
quartel feito de zinco. Tinha uma
companhia de 120 homens à minha
espera. Quando aterrámos, numa pista
de terra batida, os homens – que já
tinham um ano de guerra e muitos
deles já estavam loucos por aquilo
que tinham passado - abeiraram-se de
mim e massacraram-me com perguntas:
“O que é que vieste para aqui fazer?
Não tiveste coragem de fugir? Vens
para aqui morrer como nós?”, lembra
o ex-militar.
“O que eu vi na cara deles foi
pessoas já desumanas. Houve um cabo
que me agarrou no braço, levou-me à
enfermaria e disse-me: “Tu vens
substituir aquele que está no
caixão. Vens fazer a vez do furriel
Leal, que está à espera de embarque
para Portugal, onde será o funeral”.
Fiquei abaladíssimo e disse para mim
que já não voltava mais ao meu
país”, refere.
O furriel Leal era atirador de
artilharia e morreu num combate que
a Frelimo fez ao quartel. “A Frelimo
atacava-nos desde o território
zambiano e nós não podíamos
ripostar, porque não podíamos estar
a atacar outro país”, sustenta.
“Fui chamado à secretaria pelo
capitão José Lopes, comandante da
companhia de artilharia (CART 7251),
que pôs-me ao corrente do que eu ia
fazer e disse-me que eu tentasse
pelo menos salvar a minha vida. Tive
o alferes Escoval como meu
comandante de pelotão e como colega
o furriel Poejo, que me deu apoio
psicológico”, descreve.
Segundo José Vieira, “estávamos num
ponto estratégico”. Era o único
quartel junto à fronteira com a
Zâmbia. A principal missão era não
deixar a Frelimo entrar em
Moçambique. Junto ao quartel havia
três povoações de nativos – Gago
Coutinho, Nhassaula e M’peua - com
cerca de 700 habitantes, que se
consideravam portugueses. “Estávamos
ali a guardar as povoações dos
ataques”, indica.
O ex-combatente conta que “estivemos
debaixo de fogo várias vezes.
Tínhamos um indiano, que passava a
palavra da Frelimo para nós. Era o
intermediário que nos avisava que
íamos ser atacados”.
No dia 1 de Março de 1974 houve um
ataque enorme ao quartel de Gago
Coutinho, com 250 homens da Frelimo.
Os canhões sem recuo, com morteiros
de 122 mm, foram colocados no morro
da fronteira com a Zâmbia e eram
manejados por chineses. “A sorte do
nosso quartel foi que só duas
granadas é que caíram dentro do
quartel, as outras passaram por
cima, senão teria sido um morticínio
total. Nós, como tínhamos sido
avisados, também já estávamos nos
abrigos subterrâneos”, afirma José
Vieira.
Um elemento da Frelimo, que era
fotógrafo e tinha uma máquina Zenit
russa, foi a cerca de um quilómetro
da unidade para tirar fotos do
quartel intacto e depois com o
quartel destruído e com a bandeira
da guerrilha. Só que entregou-se aos
portugueses e avisou-os do que ia
acontecer. E os militares lusos
prepararam-se. Quando começou o
ataque, deixaram o inimigo
aproximar-se do quartel, até ao
primeiro arame farpado e ao
anoitecer começaram a disparar.
“Ficaram lá uns quantos agarrados ao
arame farpado. Da nossa companhia
ainda houve sete feridos”, garante
José Vieira.
Deu-se o 25 de Abril em Portugal,
mas a Moçambique “nunca chegou o
cravo vermelho, pelo contrário, a
situação tornou-se um inferno”,
desabafa o militar, apontando que
“na altura estava numa operação com
23 soldados e recebemos uma mensagem
via rádio a dizer que havia um golpe
de Estado em Portugal. Atirámos as
armas ao ar, porque pensávamos que a
guerra tinha acabado. Mas não”.
“Foram ataques e mortos todos os
dias a seguir, porque era a pressão
total da Frelimo para com o Estado
Português, de forma a conseguirem
mais rapidamente a independência”,
faz notar José Vieira, frisando que
“enquanto em Portugal se vivia uma
euforia tremenda, em Moçambique os
militares portugueses foram
completamente abandonados pelo
Estado”.
“Fomos nós, em cada quartel,
individualmente, que fizemos as
tréguas com os chefes ou comandantes
das bases da Frelimo, porque senão
ainda hoje lá estaríamos”, alega o
ex-combatente.
A base da Frelimo mais próxima era
comandada por José Moiane, destacado
guerrilheiro. “Enviámos cartas,
através dos nativos, para acabarmos
com a guerra. Não havia quaisquer
imposições. Queríamos era que nos
deixassem de chatear, para ficarmos
lá até o Estado Português nos
chamar”, refere José Vieira.
Não foi fácil. O comandante Moiane
não aceitou logo, só passados alguns
dias. As tréguas só aconteceram na
primeira semana de Maio.
No dia 17 de Maio, a companhia
recebeu ordens para sair de Gago
Coutinho e ir para a cidade de Tete.
Em Julho, a companhia veio para
Portugal, mas José Vieira ficou lá,
porque não tinha ido com os
restantes militares.
“Fui para outra companhia, na ZOT –
Zona Operacional de Tete, como
adido. A Frelimo ocupou quartéis
portugueses e eu comecei a ajudá-la
a desenvolver campanhas de
alfabetização na cidade, junto de
miúdos e idosos. Ajudei também na
organização administrativa nos
quartéis e em serviços de patrulha”,
revela.
“Nos piquetes juntavam-se soldados
portugueses e da Frelimo, o que era
uma guerra. Os portugueses não
queriam estar ao lado de quem tinham
combatido. Mas quem mandava era a
Frelimo”, argumenta.
“Viveu-se um período a que posso
chamar de “guerra das minas”, porque
a Frelimo não teve tempo para
retirar as minas que tinha colocado
nas estradas e de vez em quando a
tropa portuguesa era atingida quando
passava de carro por cima de alguma.
Para não se entrar na barragem de
Cabora Bassa, foi toda armadilhada à
volta. Ainda hoje não se sabe onde
está o “croquis” desse
armadilhamento e muita gente morre”,
manifesta.
Ficou em Moçambique até 17 Março de
1975, altura em que veio para
Portugal, após ter recebido ordens
para regressar.
Recebeu uma Cruz de Guerra
(medalha), mas o que mais ganhou foi
a amizade dos seus companheiros de
guerra – o cabo Vieira, os furriéis
Poejo, Amaral, Neves e Rodrigues, os
alferes Escoval e Medeiros, o
capitão José Lopes e tantos outros,
que se juntam anualmente.
“Nunca fui atingido, mas o ferimento
que trouxe foi a claustrofobia e o
stress de guerra, de que sou tratado
desde a minha vinda para Portugal”,
afirma.
“Não choro por aqueles 10 mil que
morreram há trinta e tal anos. Choro
por aqueles 400 mil que hoje sofrem
do trauma de guerra, dos quais 100
mil não têm dinheiro para pagar a
medicação e 30 mil estão em cadeira
de rodas. A América reconheceu os
seus combatentes no Vietname. A
Inglaterra reconheceu os combatentes
que estiveram nas Malvinas. Nós até
hoje somos abandonados pelo Estado
Português”, desabafa.
Francisco Gomes (texto)
Carlos Barroso (fotos)